sábado, fevereiro 18, 2006

Não quero ver dois homens trocando beijos (por Larry David para The New York Times)


Alguém precisa escrever isso, e por que não eu? Não assisti a "O Segredo de Brokeback Mountain" e não tenho a menor intenção de fazê-lo. Mesmo que caubóis me laçassem e arrastassem ao cinema, ainda assim me esforçaria para manter os olhos fechados e tapar as orelhas.

E eu adoro os gays. Ei, eu tenho até alguns conhecidos gays. Sou favorável ao casamento gay, ao isso e aquilo gay; só não quero ver dois homens heterossexuais se apaixonando, trocando beijos, caminhando de mãos dadas e sozinhos pela pradaria. É só isso.

Será que é algo tão terrível? Será que isso quer dizer que sou homófobo? Bem, se sou, lamento, mas não vou mudar. Porque as pessoas podem me chamar do que quiserem, e mesmo assim eu não vou assistir. Para minha surpresa, tenho alguns amigos heterossexuais que não só assistiram ao filme mas gostaram dele.

"Uma das melhores histórias de amor de todos os tempos", elogiou um deles. E outro disse: "Oh, meu Deus, você se esquece completamente de que se trata de dois homens. Acho que você, em particular, vai adorar". "Por que eu?"

"Porque sim, confie em mim."

Mas eu não confio. Se os dois caubóis, ícones da masculinidade e 100% machos, podem sucumbir, que chance teria eu, que valho no máximo entre 25% e 50% de um homem, a depender de quem esteja comigo no momento?

Sou uma pessoa muito suscetível, facilmente influenciável, nasci para seguir os líderes, e minha resistência a qualquer técnica de venda é zero. Quando entro em uma loja, os vendedores disputam a tapa o direito de me atender. Minha mulher não me deixa assistir a infomerciais devido à pilha de porcarias que já comprei e que estão lá, atulhando a garagem. Meu armarinho de remédios está repleto de vitaminas e de tratamentos contra a calvície.

Assim, quem é que pode garantir que eu não vou me encantar por essa história de ser gay? É preciso encarar os fatos: há algo de interessante na idéia. Eu sempre me dei muito bem com homens. Jamais tive que ficar caminhando de um lado para outro no meu quarto ensaiando o que dizer antes de convidar um homem a ir comigo ao cinema. E, quando saio com homens, não pago suas contas, o que evidentemente representa o maior atrativo da idéia.

Além disso, os homens gays sempre parecem estar se divertindo muito. Na festa de Natal a que compareci, eles foram os únicos que cantaram. Eu teria adorado cantar, mas o peso da minha heterossexualidade não me permitiu.

Tenho certeza de que, se assistisse ao filme, aquela voz que vive em minha cabeça simplesmente pelo prazer de me torturar teria momentos de imensa diversão. "Você gosta desses caubóis, não gosta? Eles parecem bonitinhos. Não tente me enganar, seu gay. Melhor desistir de combater essa vontade. Você é gay! Você é gay!" Não que haja algo de errado nisso.

(Larry David é co-autor e roteirista da série cômica "Seinfeld")

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A Reboque (OPA !!!) de "Brokeback Mountain" (por Chico Marques)

Desde criança sempre fui fascinado por filmes de aventuras.

No entanto, nunca fui grande fã de westerns.

Sempre achei safaris, navegações e contatos com civilizações primitivas muito mais interessantes que engolir poeira cavalgando no deserto do Arizona, conduzir rebanhos malcheirosos, ou viver procurando -- e eventualmente achando -- encrencas em bares sujos e barulhentos.

Nunca tive a menor simpatia pelo estilo de vida dos westerns clássicos americanos. O moralismo calvinista e os rígidos códigos sociais dos lendários homens da lei que habitam esses filmes nunca me sensibilizaram. Não tenho a menor dúvida de que esses filmes foram responsáveis pelo surgimento de uma verdadeira legião de misantropos pouco ou nada esclarecidos, cujos herdeiros hoje dão respaldo a essa América prepotente, presunçosa e obtusa comandada por George W. Bush.

Que, diga-se de passagem, é um grande fã de westerns.

Eu sou capaz de apostar que o presidente Bush deve admirar muito o personagem de Gary Cooper em "Matar Ou Morrer" ou o de Alan Ladd em "Shane", ou ainda o de John Wayne em "Rastros de Ódio' -- a ponto de chorar disfarçadamente na cena final, torcendo para que seu pai, seu tio Dick, sua mulher, seus filhos e seus eleitores não percebam.

Aliás, imagino o quanto ele deva ficar dividido entre os personagens de James Stewart e de John Wayne em "O Homem Que Matou O Facínora" -- mesmo sabendo que, para a opinião pública mundial, ele tenha mais a ver com o facínora interpretado por Lee Marvin.

O caso é que George W. Bush não seria hoje presidente se John Ford e Howard Hawks não tivessem passado boa parte de suas carreiras ressaltando e redimensionando para várias gerações de frequentadores de cinema -- e de telespectadores -- os ideais republicanos mais tradicionais em seus westerns clássicos.

E ninguém personificou melhor o espírito brigão e burrão dessas platéias do que John Wayne

Não é a toa que muitos produtores e diretores liberais não só o evitavam, como também não faziam a menor questão de trabalhar com reacionários de carteirinha como Wayne.

Consta nos autos dos bastidores de Hollywood que era um pesadelo trabalhar com ele, de tanto que ele metia o bedelho onde não devia. Vários westerns sofreram alterações drásticas durante a produção por conta de suas interferências nos roteiros dos filmes e nas escolhas de elenco.

John Huston nunca negou preferir lidar com Humphrey Bogart, Clark Gable ou Erroll Flynn completamente bêbados no set de filmagens do que ter que aturar John Wayne sóbrio.

Uma curiosidade: John Ford e Howard Hawks -- que eram amigos de Wayne -- só conseguiram levantar a temperatura sexual de seus filmes e imprimir alguma libido na figura dele em aventuras rodadas na África ("Mogambo", "Hatari") e na Ásia ("O Aventureiro do Pacífico"). Nas planícies, pradarias e montanhas americanas, nem pensar.

Todo esse contexto do Oeste Glorioso veio por água abaixo nos anos 60.

O western clássico ficou demodée nos anos Kennedy, virou veneno de bilheteria na administração Lyndon Johnson, com a explosão do conflito no Vietnam, e só conseguiu ressurgir no final dos anos 60, devidamente moldado aos novos tempos.

O tom épico dos westerns clássicos deu lugar a um realismo visual e dramático tosco e propositadamente desagradável, em filmes geniais como "McCabe & Mrs. Miller" (de Robert Altman), "Roy Bean" (de John Huston) e "The Ballad Of Cable Hogue"(de Sam Peckinpah).

Até que surgiu "Butch Cassidy & The Sundance Kid", o primeiro western pós-moderno da história do cinema, com um roteiro perfeito de William Goldman, direção elegante e segura de George Roy Hill e performances notáveis de Paul Newman, Robert Redford e Katherine Ross -- sugerindo inclusive um "ménage a trois", que certamente irritou muito os defensores mais ortodoxos do gênero...

"Butch Cassidy" conseguiu a proeza de agradar a todos os públicos, coisa que nenhum western clássico jamais ousou fazer. Voou tão alto e tão longe -- tanto em termos artísticos quanto comerciais -- que acabou matando a produção de filmes do gênero nas salas de cinema.

Desde então, de tempos em tempos, em períodos de entresafra criativa, algum produtor encampa algum projeto de western, que às vezes até acaba vingando nas bilheterias -- como "Cavalgada Dos Proscritos", "Silverado", "Dança Com Lobos" e "The Unforgiven".

Mas são sempre surtos esporádicos, sem consequências.

Até porquê a produção contínua de filmes do gênero esbarra num fator imponderável: é praticamente inviável inserir merchandising de marcas e produtos em westerns -- e, como se sabe, toda e qualquer produção de Hollywood é movida por isso nos dias de hoje.

No entanto, com a tragédia de 11 de Setembro e o presidente George W. Bush usando e abusando de sua retórica de cowboy texano nos noticiários -- dizendo frases pretensamente profundas como "a man's gotta do what a man's gotta do" --, vários produtores tomaram coragem e decidiram tentar resgatar o western clássico mais uma vez.

Detalhe: todas essas novas produções buscam inspiração na estética e nos valores tradicionais do gênero, mas não encampam nem os "ideais" da política externa desastrosa do presidente Bush, nem as motivações que estão fazendo de "Brokeback Mountain" um campeão de bilheteria no mundo inteiro.

Como nenhum deles fez carreira de sucesso nos cinemas, merecem ser descobertos pelo grande público, agora que estão disponíveis em DVD e VHS.
"Desaparecidas", de Ron Howard, é um caso curioso. O enredo do filme é, na essência, muito semelhante à de "Rastros de Ódio", de John Ford. Tommy Lee Jones faz um pai de família que, um belo dia, resolve sair pelo mundo, reaparecendo muitos anos depois com cabelos longos e hábitos adquiridos com os índios. Sua filha, Cate Blanchett, uma mulher amarga e muito religiosa, o odeia profundamente, e reprova sua tentativa de voltar para o meio familiar. Nesse meio tempo, um grupo de apaches sequestra a mais velha das filhas dela para vender na fronteira com o México, e a família novamente unida segue os rastros dos índios para tentar resgatar a menina.

Howard segue a cartilha do western clássico com muita reverência. Curiosamente, sempre que ele escapa da rigidez estilística do gênero, o filme ganha densidade dramática e cresce. A delicadeza com que ele confronta (para depois conjugar) as crenças religiosas de pai e filha é particularmente tocante, e revela seus méritos incontestáveis tanto como diretor de atores quanto como contador de histórias -- esse último dividido com o engenhoso roteirista Tom Kaufman, seu parceiro de trabalho há já alguns anos.

"Desaparecidas" não tem medo de abordar temas que caíram em desuso nesses tempos de "direita volver" na América, como solidariedade, tolerância e respeito pelas diferenças cultivadas por cada povo.

Sintomaticamente, Howard rodou dois finais diferentes: um clássico e extremamente solitário, e outro coletivo e propositadamente anticlimático. Preferiu optar pelo coletivo, o que revela as intenções nobres e a coragem artística dos produtores.

"Desaparecidas" traz performances marcantes e inspiradas de Tommy Lee Jones e Cate Blanchett, e deve agradar tanto ao público feminino adulto quanto ao masculino.
Já "Pacto de Justiça", de Kevin Costner, segue em outra direção. Aqui a referência clássica é "Paixão dos Fortes", de John Ford. Um pequeno grupo de vaqueiros comandado por Robert Duvall e pelo ex-pistoleiro Costner conduz seu rebanho através das terras de um latifundiário que odeia cowboys independentes e itinerantes como eles. Depois de algumas provocações, e de uma agressão que culmina em um assassinato, surge um confronto, que acaba por dividir a cidade. Parte dela acata a pressão imposta pelo latifundiário, e a outra parte se rebela, dando apoio aos cowboys itinerantes. Então, começa uma guerra civil. Que uma mulher, Annette Benning, tenta impedir, em vão.

A história é banal, e a idéia de Costner parece ser justamente dar um tratamento em tom menor ao confronto, para assim permitir aos atores ser generosos com seus personagens. Nesse aspecto, "Pacto de Justiça" não só é extremamente bem-sucedido, como revela um diretor muito superior ao que ganhou uma tonelada de prêmios -- mais da metade deles sem merecer -- por "Dança Com Lobos".

Algumas pequenas falhas no roteiro indicam que o projeto original de Costner deveria ser mais longo, pois a edição final aparentemente suprimiu momentos esclarecedores, o que é uma pena. Um futuro "director's cut" talvez dê um jeito nesse problema.

Depois do inevitável duelo, e da guerra civil que dizima boa parte da população da cidade, "Pacto de Justiça" mostra o que nenhum western que eu lembre já ousou mostrar: o recolhimento dos corpos estendidos pelo chão e a divisão do espólio da cidade entre os vencedores.

Esse final anticlimático e prolongado é com certeza o grande traço de originalidade de "Pacto de Justiça". Que traz ainda uma performance impressionante de Kevin Costner, no papel de um pistoleiro ogro, fatalista e, ao mesmo tempo, sensível.

Deve agradar prioritariamente ao público masculino adulto.
Por último, um western belíssimo e totalmente atípico, que passou desapercebido em seu lançamento dois anos atrás. Trata-se de "Riqueza Perdida", de Michael Winterbottom, diretor britânico responsável por "Benvindo A Sarajevo".

O enredo é basicamente o seguinte: Pater Mullan faz um escocês procura ouro nas montanhas geladas do norte da Califórnia levando a reboque sua mulher polonesa (Nastassja KInski) e sua filha recém-nascida. Obcecado por ficar rico, vende a mulher e filha para um sujeito solitário que carrega muito ouro nos bolsos, e que está indo embora para Sacramento. Vinte anos mais tarde, já rico e dono de todo o vilarejo, reencontra a mulher (agora viúva) e a filha (agora escritora, interpretada por Sarah Poley), e tenta consertar essa falha grave em sua biografia.

"Riqueza Perdida" é baseado em "The Mayor of Casterbridge", um romance de Thomas Hardy, autor clássico que vem sendo adaptado constantemente -- e sempre de forma brilhante -- para o cinema por Michael Winterbottom ao longo dos últimos anos. E não é exagero afirmar que "Riqueza Perdida" é a melhor e mais criativa de todas as adaptações de Thomas Hardy já feitas para o cinema -- o que inclui pequenos clássicos como "Tess" de Roman Polanski, e "Longe Deste Mundo Insensato" de John Schlesinger.

Michael Winterbottom começou transferindo a ação das montanhas da Escócia, do livro original, para as montanhas da Califórnia na época da Corrida pelo Ouro. Reuniu um elenco espetacular de atores -- quase todos com sotaques europeus, coisa rara em Hollywood -- e conseguiu extrair deles performances notáveis. Nastassja Kinski, por exemplo, está magnífica, no melhor momento de sua carreira.

O cenário montanhês gelado lembra "McCabe & Mrs. Miller", de Robert Altman, e "Pistoleiros do Entardecer", de Sam Peckinpah, e é totalmente atípico para westerns. Mas é perfeito para as intenções do diretor, de colocar grupos de pessoas vivendo no limite e enfrentando a natureza hostil da montanha onde vivem.

Genial a sequência em que eles levantam uma mansão vitoriana no topo da montanha para o escocês milionário que é dono de toda a vila. Deve ter matado Werner Herzog de inveja. O mesmo vale para a cena da explosão da carroça que carrega nitroglicerina, seguida de um cavalo pegando fogo enquanto corre pela neve.

"Riqueza Perdida" é um filme belíssimo, muito superior aos outros dois comentados anteriormente. É um western dramático de primeira grandeza, a prova definitiva de que Michael Winterbottom é um realizador de primeira linha -- que só não é do primeiro time de diretores internacionais porquê ainda não teve a sorte de emplacar um "blockbuster" e faturar alguns Oscars.

Quem sabe isso não acontece com "Tristam Shandy", baseado no romance clássico de Lawrence Sterne, que ele chegaando agora às telas do mundo inteiro, e é um sério candidato a estatuetas de vários tipos do ano que vem.

Desaparecidas (The Missing - 2003 - Columbia)
Direção: Ron Howard
Elenco: Tommy Lee Jones, Cate Blanchett, Val Kilmer

Pacto de Justiça (Open Range - 2003 - Buena Vista)
Direção: Kevin Costner
Elenco: Robert Duvall, Annette Benning, Kevin Costner

Riqueza Perdida (The Claim - 2000 - MGM)
Direção: Michael Winterbottom
Elenco: Wes Bentley, Peter Mullan, Milla Jovovich, Nastassja Kinski, Sarah Poley

Todos os títulos disponíveis em DVD e VHS
Fonte: Vídeo Paradiso
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