sexta-feira, abril 28, 2006

A Reinvenção do Cinema Pornô (por Pedro Doria para NoMinimo)


A princípio, as cenas poderiam estar em qualquer canal. A atriz é uma loura bonita, de traços particularmente suaves. Não é uma grande atriz, mas é correta. A iluminação é impecável, o cenário não parece cenário. O ator também é correto e há drama na cena. Ele já está perante aquela massagista, uma mãe solteira que luta para sustentar o filho, pela terceira vez. Quer um toque a mais. Ela tem quase raiva de estar tentada a aceitar o dinheiro de que precisa.

Não é um roteiro excepcional, mas quem flagrasse a cena poderia perfeitamente confundir com um filme feito para a tevê. O acabamento é bem melhor do que boa parte das séries enlatadas, bem melhor do que novela, tudo foi capturado em película, não em vídeo. Não é cinema para Oscar – muito menos Berlim ou Veneza – mas é melhor que muito filme B. Só que aí a moça despe a calça do sujeito e o engole. Chama-se "A massagista", de 2004, a atriz é Jenna Jameson, a maior estrela pornô de todos os tempos.

Há uma história, as cenas de sexo explícito cabem num contexto e não acontecem a intervalos curtos e regulares, o acabamento é profissional, a maquiagem não é exagerada e as pessoas são todas bonitas. É um tipo raro de filme pornô, obra de um homem: Steve Hirsch, fundador da produtora Vivid. Ele é, praticamente sozinho, responsável por uma aura de legitimidade que o cinema pornográfico começa a angariar. É também um ferrenho inovador.

Agora em maio, Hirsch dará mais um passo inovador: vai vender seus filmes para download via Internet. Funciona de forma simples: o cliente paga um dinheiro com seu cartão de crédito e tem a permissão de baixar um arquivo imagem. Esta imagem, gravada num DVD-R, produz um DVD igualzinho ao comprado na loja, com menus, extras, comentários do diretor e o que mais for. É uma estratégia ousada. Afinal, esta imagem pode ser copiada quantas vezes for. Mas ninguém sofre mais com a pirataria de filmes do que o cinema pornô – e Hollywood está de olho na experiência de Hirsch. Pode ser seu caminho.

Para Hirsch, um homem de 45 anos que gosta de vestir camisas com um ou dois botões abertos e usa pulseiras de ouro, esta é uma simbiose que faz parte da vida. Ele aprende com Hollywood. Em 1984, com 20 mil dólares emprestados, fundou a Vivid com uma idéia fixa na cabeça: contratar Ginger Lynn. Na época, ela era a mais badalada atriz do ramo. Mas o que Hirsch queria fazer, ninguém fazia. Para filmes triplo-x, contratavam-se atores e atrizes por cena. Uns ganhavam mais, outros menos, mas o dinheiro era por cena. Hirsch queria exclusividade por alguns anos em troca de salário fixo e participação nos lucros. Queria recriar um star system.

Hollywood começou assim: a Metro tinha suas estrelas exclusivas, como a Warner ou a Fox. Uma Mary Pickford ou um Charles Chaplin tinham contratos de produção de tantos filmes em tantos anos, atores não trabalhavam para quem quisessem. Em troca, os grandes estúdios investiam pesadamente em suas imagens – transformavam-nos em estrelas. Meio século depois, Steve Hirsch queria fazer o mesmo com o cinema pornô.

Seu projeto era bem mais ambicioso: ele queria ampliar o mercado do cinema erótico – mas isto tudo faz parte de sua história. Em 1971, seu pai, Fred Hirsch, e a mãe Roberta, chamaram o pequeno Steve e sua irmã mais velha, Marcie, para uma conversa. Fred era corretor da Bolsa, mas tinha recebido uma proposta para ser vendedor de filmes pornôs e queria aceitar. No tempo, este era o tipo de coisa que se via no cinema, quase sempre cinemas sujos em cantos sinistros da cidade.

Quando veio o videocassete e o conceito de aluguel de filmes, tudo mudou. Hollywood apavorou-se; afinal, aquilo permitiria que cópias de seus filmes se espalhassem pelo mundo sem que um tostão de direitos autorais revertesse aos estúdios. Mas, para o cinema adulto, era notícia boa. Um grupo de clientes interessados poderia assistir a seus filmes em casa e não numa sala mofada com gente estranha. É uma lição que a família Hirsch aprendeu rapidamente: a tecnologia é sua amiga. Fred largou o serviço de vendedor e começou sua própria produtora de vídeos, na qual ele, sua mulher e os dois filhos trabalharam arduamente.

Ao longo dos anos 80, também Hollywood descobriu que os vídeos não eram uma ameaça e sim uma portentosa fonte de renda – até maior do que a das salas de exibição. Mas, a essas alturas, Steve já era bem mais ambicioso do que o pai. Se os vídeos haviam ampliado o público potencial, não tinham feito o bastante. E ele parou para destrinchar o porquê.

Grande parte do problema ainda tinha a ver com o que prevenia público de ir às salas de cinema mofadas: não falta de interesse, mas excesso de pudor. E, se apanhasse uma das capas dos filmes de seu pai, com cenas espalhadas de sexo, muitas cores, confusão e nomes que em geral envolviam trocadilhos fáceis, ele bem conseguia entender. Uma capa mais discreta atrairia mais clientes. Mas o cuidado no acabamento tinha que ir além da capa mais discreta.

Porque, ele pensou, era preciso conquistar o público feminino. Muitos potenciais compradores sentir-se-iam constrangidos em ter um filme destes em casa, onde a mulher poderia descobri-lo. Se, no entanto, a mulher se interessasse – se fosse um filme normal, com pessoas bonitas e cenas comportadas de sexo cuidadosamente salpicadas, o público seria bem maior. E para garantir esta qualidade, precisava de estrelas que pudesse alçar a um patamar diferente das outras estrelas pornôs. Precisava ter total controle sobre suas carreiras para que parecessem mais respeitáveis. Precisava evitar que participassem de produções rasteiras demais. Um star system, enfim.

A Vivid deu certo de largada e Steve ficou rico, rodou por tudo quanto é festa possível até que, em 1988, teve de parar e gastar uns meses numa clínica para recuperação de toxicômanos. Não controlou a cocaína – desde então, está limpo, um limpo que inclui álcool zero. Não deixou de crescer por conta: os anos 90 foram marcados pela tevê a cabo, o cliente não precisava mais ir a uma locadora, poderia assistir ao filme em casa, de maneira ainda mais discreta.

E aí ele percebeu que eram clientes diferentes. Há o sujeito que não tem coragem de assinar a um canal de sexo, mas busca a nudez em quantidade; há o executivo entediado numa noite de hotel; há o aficcionado hard core. Então, cada filme que a Vivid produz tem três edições. Numa, a penetração jamais aparece e canais a cabo de cinema podem passá-lo de madrugada; para os hotéis, há penetração, mas é tudo sempre muito comportado – cenas de sexo anal, de ejaculação, estas praticamente só em DVD ou canais de sexo que o sujeito escolhe assinar em casa. Desta forma, a empresa produz 12 filmes por ano, mas chega a soltar 150, incluindo compilações de cenas para os fãs mais ardentes.

Em 1999, a Vivid comprou da Playboy o canal a cabo Hot, apostando que o mercado caseiro explodiria. Não repassou um tostão à vendedora, simplesmente assumiu uma dívida de 25 milhões de dólares. Quando o revendeu para a Playboy, três anos depois, a audiência tinha quintuplicado e Hirsch embolsou 400 milhões de dólares, além de um contrato de fornecimento de conteúdo.Mas a estrela que chegou mais longe, que fatalmente mudaria o rumo da empresa, não foi Hirsch quem descobriu, foi a Wicked. Fundada em 1993, a Wicked seguia cautelosamente a fórmula da Vivid. Em 1994, contratou uma jovem stripper de 20 anos, filha de um policial de Las Vegas, chamada Jennifer Marie Massoli. Era Jenna Jameson. No primeiro ano de serviço, Jenna levou seu primeiro prêmio. No segundo, angariou as principais estatuetas da indústria. Jenna era bastante bonita, sabia atuar de forma correta – não muito diferente de muita estrela da Hollywood oficial – e agia como um furacão na cama. Repentinamente, a maior estrela do ramo não estava na folha de pagamento da Vivid.

Virou a obsessão de Steve Hirsch, que só conseguiu contratá-la definitivamente em 2002. Jenna assinou contratos de publicidade até com a Adidas – fez-se a primeira estrela pornô a ser vista como legítima o bastante para não chocar ninguém pelo ramo que atua.

Quando, no dia 8 de maio, Steve Hirsch começar a vender seus filmes pela Internet a 19,95 dólares cada, Hollywood estará atenta. Ele já fez muita coisa antes inimaginável – com sucesso!

"A Dama de Honra", Ponto para Claude Chabrol (por Ruy Gardinier para Contracampo)


Os últimos filmes de Claude Chabrol poderiam muito bem se resumir como documentários sobre como os personagens da burguesia de cidade pequena na França entram, dirigem e saem de seus carros. Basta mencionar o inesquecível final de A Teia de Chocolate, em que a ação se resolve por uma questão de proficiência no dirigir. Em A Dama de Honra, isso já está presente desde o começo, quando, ao passar dos créditos, vemos um travelling correndo lateralmente na velocidade e na altura de uma janela de carro. Se dessa vez o carro não tem um papel decisivo no desenrolar da trama, isso apenas faz com que seu papel na construção de um imaginário fique mais forte. Já o era em A Flor do Mal (La Fleur du mal, 2003), infelizmente inédito no Brasil, com os muitos motoristas, carros, caronas e viagens. Em A Dama de Honra, o carro é motivo de comentário (o funcionário do restaurante que se lembra de um homem pelo veículo que ele dirigia), de contemplação, de poder (quem tem e quem não tem, quem pode dirigir e quem não pode), e principalmente o papel de metaforizar quem pode controlar seu destino. Assim, é o protagonista Philippe, interpretado magistralmente por Banoît Magimel, que, saindo do automóvel, se toma como homem-de-família que equilibra e organiza a vida familiar do cotidiano que compartilha com sua mãe, Christine (aliás Aurore Clément, sempre ótima), e suas irmãs, Sophie e Patricia. Ele é a expressão do controle: é o mais racional da família, tem um futuro promissor trabalhando numa firma de construção e reparos, e parece carregar sua vida sentimental entre a pouca importância e a discrição.

Mas, como sempre em Chabrol, é quando os destinos fogem das coordenadas que tudo fica mais interessante. É aí que o estudo dos pequenos gestos mesquinhos da classe burguesa são alçados a um outro grau, a racionalidade se transforma em seu oposto, o senso-comum se transforma em confusão e patologia. Em Chabrol, não existe oposição, mas contigüidade entre um estado e outro. É essa a grandeza que povoa filmes tão distintos quanto Os Fantasmas do Chapeleiro, Mulheres Diabólicas, As Simplórias ou O Açougueiro, entre outros: a de circunscrever muito bem os gestos e os hábitos de uma classe muito bem instalada, e ainda assim mostrar como dela brota a loucura, a perversão, a luta de classes, enfim aquilo que de forma corrente na sociedade é visto como o outro da burguesia e de seu bom gosto, quando não passa de uma modalidade de sua própria existência. E os parâmetros de Philippe, sempre muito bem instalados, só cambaleiam quanto ele conhece Stéphanie, ou melhor, Senta, na festa de casamento de sua irmã Sophie (de fato, é Senta a "dama de honra" que dá o título ao filme). A perturbação tem lugar, e de uma hora para o outro os dois já trocam confidências de amor eterno, criam um laço que coloca na berlinda a boa distância aceitável. É curioso que o filme passe um bom primeiro momento apenas construindo o ambiente em que vive Philippe, mostrando seus costumes, seu ritmo particular, sua ligeira timidez e seu senso de recente patriarca, para só num segundo tempo mostrar Senta.

Na verdade, "A Dama de Honra" é um título que se refere não à mulher, mas à sensação que a mulher evoca na vida do protagonista. Em todo caso, é também pela construção – psicológica, física, rítmica – da personagem de Senta que o filme continua. E aí torna-se fundamental a escolha de Laura Smet, uma atriz voluptuosa com um rosto que, dependendo do ângulo que se vê, apresenta uma beleza inteiramente equilibrada ou desequilibrada, torna-se deslumbrante ou estranha. Essa dupla reação, essa dúvida, essa confusão povoará tanto a relação de Philippe com Senta quanto a do espectador com o filme: qual será a natureza dessa personagem excêntrica? Será apenas uma jovem com delírios de grandeza? Será ela uma mitômana? Ou apenas alguém de uma natureza tão diferente que espanta mas que não apresenta nenhum desvio de caráter? Enfim, uma louca de pedra ou apenas uma maluquete adorável? É entre esses dois pólos que o filme trabalha a percepção que Philippe tem de Senta, e é a indiscernibilidade entre os dois (o desejo dele pedindo uma interpretação, os fatos demandando outra) que faz com que ele mantenha o laço que une os dois. Pois Senta é para Philippe aquilo que, se por um lado suspende sua vida trivial e bem balanceada, é a única oportunidade para que ele fuja do convívio mediano em que está instalado – a esse respeito, a flagrante estupidez e feiúra do marido de Sophie e a profissão da mãe, manicure, só tornam o ambiente mais mundano e insuportável para ele. Se ele aspira a uma vida diferente, mais "heróica" ou marginal – algo que sua irmã menor, autora de pequenos furtos e usuária de drogas, já tinha escolhido antes dele –, é apenas através de Senta que ele alcançará.

A Dama de Honra comprova um percurso curioso na carreira de Chabrol. É que de um tempo para cá, ele vem preferindo fugir da grande forma, dos movimentos precisos e elegantes de câmera e escolhendo uma forma mais ligeira, menos burilada, priorizando a fluência da narrativa e chamando menos a atenção para a imagem como entidade autônoma. Ainda assim, Chabrol permanece o mesmo arquiteto langiano, tomando para si os gêneros e utilizando-os em sua trivialidade máxima (a esse respeito, o filme está às antípodas de Ponto Final, de Woody Allen, que se quer muito mais que um filme de crime, e claramente não é nada mais...), enredando tanto Benoît Magimel quanto a nós, espectadores, em sua teia de dúvidas, fazendo a ficção lentamente caminhar para um clímax e fazendo os créditos finais aparecerem ainda bruscamente, sem um epílogo que ratificasse as posições finais dos personagens. Esse novo momento de Chabrol lembra em parte o caminho de Dario Argento, que também vem trabalhando o gênero em seus aspectos francamente menores e reduz seu savoir-faire de encenador à simples fluência da narrativa. Não é questão de preguiça, de comodidade ou de ausência de tensão estética. Apenas uma aposta em fazer o cinema funcionar em sua chave de crença no gênero (a lição de John Carpenter) num momento em que a quase totalidade da fruição no cinema passa por um estado de auto-consciência absoluta, um efeito-Blair Witch, os Suspeitos ou Jogos Mortais (em que o whodunnit dá lugar a uma briga entre diretor e espectador para saber quem engana quem). Grande caricaturista da sociedade francesa desde Balzac e Flaubert, criador ele mesmo de uma "comédia humana" toda própria, algoz incansável da pequeneza da classe média, Chabrol faz com A Dama de Honra um suspense psicológico que dá gosto de assistir e, se não adiciona uma viga mestra a uma obra já consolidada, ao menos elabora e torna mais visíveis certos traços de sua construção. Se cada filme de Chabrol é um capítulo novo de seu único "livro", esperamos ansiosamente sua continuação, novamente com Isabelle Huppert, que acaba de estrear na França: L'Ivresse du pouvoir/A Embriaguez do Poder. To be continued...

O homem que me envelheceu (por Tom Hanks para The New York Times)


Em outubro, depois de minha última cena como Robert Langdon em "Código Da Vinci" -depois dos abraços, presentes e piadas sobre desemprego- trouxeram um bolo grande o suficiente para alimentar toda nossa unidade, velas acesas.

O bolo não era para mim; eu já tinha celebrado em julho, quando as equipes francesa e inglesa cantaram "Parabéns para Você" para mim na Grande Galeria do Louvre. Em vez disso, no que deve ter sido uma coincidência divina, eu terminei o "Código Da Vinci" no mesmo dia em que Dan Striepeke, meu maquiador há 19 anos, fez 75 anos.

O showbiz sempre foi cheio de coincidências inspiradas desse tipo, fornecidas por uma deusa que eu chamo de Película, que tece sua magia para todos -desde aspirantes a atores e agentes até treinadores de animais e guardas. Ela transforma momentos ordinários em mágicos, freqüentemente impulsionando carreiras ao mesmo tempo.

Em 1986, quando eu estava pulando de um filme para outro sem o benefício de uma equipe -um Garoto Prodígio sem Batman- Película devia estar observando as ondas em seu lago celestial. Pois, veja! Eu fui escalado em "Dragnet - Desafiando o Perigo" como detetive Pep Streebeck e sentei na cadeira de Danny Stripeke pela primeira vez. Nossos nomes parecidos sugeriam como nosso encontro era certo.

Danny tinha um belo Mustang conversível antigo na época. Ele morava em Marina del Rey com sua mulher, Carol, e passava os finais de semana em seu veleiro. Então, freqüentemente usava sapatos de deck, algum tipo de cinto de corda e capa de vinil de todas as cores da natureza.

Como tinha tido um susto com a saúde de seu coração, mantinha-se magro com exercícios e uma dieta de muitas maçãs -"ótimas para o coração", dizia.

Eu tinha apanhado suficiente na indústria -e tinha aprendido o suficiente- para escolher como peça chave do meu esquadrão este veterano de 40 anos no cinema, que tinha dado a Elvis Presley seu bronzeado em "Viva Las Vegas" e a Lawrence Olivier seu nariz romano em "Spartacus".

A maior parte dos civis -pessoas que não trabalham no cinema- acha que os maquiadores são duendes que passam pó-de-arroz no nariz dos atores.
Entretanto, são verdadeiros artistas, freqüentemente pouco celebrados, que dão aos filmes o toque suave de seus pincéis e o duro trabalho de sua arte. Sua criação, que será examinada na telona por tantos anos quanto o filme tiver público, é a maior manifestação física da interpretação de um ator de seu papel.

É preciso confiança das duas partes -no instinto do ator e na habilidade do maquiador. Em uma parceria que qualquer ator invejaria, Danny protegia o acabamento externo de meus personagens para que eu pudesse ponderar meus papéis sem ter que explicar as coisas que não podem ser explicadas de qualquer forma.

Danny fez de nosso trailer de maquiagem um oásis, no meio do caos -muitas vezes, pânico- do set de filmagem. Muito antes de eu subir atrasado no trailer, ele arrumava sua estação de trabalho, fazia café, ligava a Rádio Pública Nacional e algumas vezes servia delícias do café da manhã.

Meus instrumentos para barbear estavam prontos -um barbeador Norelco, talco em bastão, uma lâmina descartável para os pelos mais resistentes. E depois, com um tapa ritualístico de Sea Breeze em meu rosto, partíamos para o trabalho.

Tanto em filmes divertidos ("Pegue-me se Puder") quanto enredos difíceis ("Uma Dupla Quase Perfeita" -ridiculamente difícil), Danny cuidou de minhas atitudes mercurianas e da minha pele, oferecendo seu ouvido para minhas reclamações e alterando a química do meu corpo quando necessário com um novo sabão facial, um bolo feito em casa ou um copo de cabernet.

Meu maquiador e eu trabalhamos em todo o mundo e em todos os estúdios de Hollywood. Meu rosto é sua tela. Ele fez de mim um policial, um astronauta, um agente do FBI, um Mestre do Universo, um turista eslavo e até Papai Noel.

Em um inverno gelado em Chicago, em "Estrada para Perdição", ele mostrou a violência do meu personagem com um nariz ligeiramente quebrado e olhos marcados pelas linhas duras do meu chapéu e bigode. O "Naufrago" era todo Danny e a cabeleireira Kathy Blondell. Quando emagreci para demonstrar quatro anos perdido no Pacífico Sul, Danny criou cicatrizes, marcas de sol, assaduras, dentes podres e feridas. Horas antes do nascer do sol no paraíso de Fiji, eu dormia enquanto Danny e sua equipe combatiam o cansaço e as horas, destruindo-me em um frenesi igual a uma equipe de Fórmula 1 preparando o carro para voltar às pistas.

Em "Forrest Gump", trabalhamos 27 dias sem folga, fazendo cenas em New Hampshire, Vermont e Maine antes de voltar para a Carolina do Sul, tudo em um final de semana. Quatro Estados e três barbas em dois dias! Danny me transformou de adolescente em soldado do Vietnã e pai enquanto Sally Field morria de câncer. Ele e sua equipe conquistaram uma das nomeações ao Oscar de Forrest Gump. Talvez porque poucos conseguiram ver a maquiagem, foi para casa sem nada.

Começamos nossas carreiras em escolas da Califórnia -eu em Oakland, ele em Santa Rosa- separados por uma geração, mas gêmeos em nosso amor pelas artes cênicas. Fui para o Leste tornar-me ator. Danny encheu caixas de maquiagem e foi para Hollywood. Película devia estar acompanhando sua peregrinação pois, em uma manhã de outono no final dos anos 40, ela o direcionou para La Cienega Boulevard, onde encontrou seu destino.

Os Century Players estavam ensaiando "The Fabulous Invalid", de Moss Hart e George S. Kaufman, que Danny tinha feito na escola. Ele se sentou em uma poltrona no fundo do teatro e durante o intervalo procurou o diretor, John Claar.

"Você precisa de um maquiador. Sou eu."

"Ah sim?" Disse Claar bebendo café, e apontou para um ator. "Então o transforme em Louis Wolheim de 'Sem Novidade no Front'".

Danny tirou seus instrumentos da mala de seu Plymouth 41 e foi trabalhar; terminou o serviço em 20 minutos.

Coincidentemente, Claar era fundador da KTTV, um dos canais de televisão que estavam começando em LA. Eles precisavam de maquiadores não sindicalizados. Danny logo estava passando batom marrom em Adele Jurgens e pó-de-arroz no nariz em Freddy Martin e seu vocalista Merv Griffin.

Danny me contou sobre esse momento e outros de sua carreira, impressionando-me com os títulos: "Os Dez andamentos", "Kismet", "Assim Caminha a Humanidade", "Volta ao Mundo em 80 dias", "A Noviça Rebelde".

Ele falava de tirar o brilho de Pinky Lee e Tennessee Ernie Ford na televisão ao vivo e ter apenas um intervalo comercial de 90 segundos para tornar um jovem e lindo Paul Newman em um boxeador velho e quebrado. Ele disse como conseguiu seu primeiro crédito em tela: "Sete Homens e um Destino". Perguntei: "Quantos você fez?" "Quatro! McQueen, Vaughn, Coburn, Brad Dexter e seus substitutos também."

Eu pedia uma história sobre Elvis, de um dos três épicos que fez com o Rei, e Danny contava como Elvis era cavalheiro e como era brincalhão. Eu ouvia ele contar da Máfia de Memphis, Ann-Marret e sobre como "Harum Scarum" era uma porcaria.

Depois da primeira temporada de "Missão Impossível", Danny foi tocado por Película novamente. O lendário maquiador Ben Nye estava se aposentando como chefe do departamento de maquiagem da 20th Century Fox. Ele vinha observando o trabalho de Danny há anos e escolheu-o como sucessor.

O menino de Santa Rosa tornou-se colega de George Cukor, Gene Kelly e George C. Scott em "Patton", em um trabalho de desafios constantes. Sua primeira tarefa nesse novo papel no estúdio foi "Planeta dos Macacos". Danny manteve o filme na hora e ajudou o responsável pela maquiagem, John Chambers, vencer o Oscar, o segundo dado para maquiagem.

Em 1994, fui tolo o suficiente para escrever, dirigir e atuar em "O Sonho Não Acabou". Pelo menos fui inteligente o suficiente para contratar Danny como chefe de maquiagem. Mas, no meio da produção, ele recebeu um telefonema e repentinamente deixou o set. Carol estava com um tumor no cérebro e não ia viver até o final do ano.

Quando o vi nos escritórios de pós-produção, oito meses depois, era viúvo. Abraçamo-nos e choramos. Depois de secar as lágrimas, ele perguntou: "Como está o filme?" Choramos de novo.

Desde nosso encontro em "Dragnet", nos anos 80, Danny passou milhares de dias de 15 horas como meu assessor cosmético. Ele viu meus filhos crescerem e meu casamento se alongar. Fizemos viagens emocionais profundas em "O Resgate do Soldado Ryan" e tivemos hilariantes ataques de riso com os guardas e condenados falsos de "À Espera de Um Milagre".

Ele compartilhou o peixe que pegou na Ilha Catalina e eu servi meus sanduíches de churrasco nas gravações noturnas. Ele encontrava grandes restaurantes para jantar em Moscou e Paris e não me deixava pagar a conta.

Em janeiro, Danny ligou para meu escritório com a notícia: tinha terminado.Acabado. Não haveria mais telefonemas às 5h da manhã; nenhuma gravação em locais exóticos como Moscou, Vale Monument ou Estúdio Culver. Tinha outras coisas que gostaria de fazer, além de colocar cremes no meu rosto em um esforço cada vez mais difícil de me dar uma boa aparência.

Por quase metade da minha vida, quase um quarto da dele fizemos 17 filmes, terminando em uma nota alta com "O Código Da Vinci". Dissemos um ao outro que incríveis aventuras esses anos nos deram e como nos amamos.

Então, aqui estou, com um vazio em minha equipe antes ocupado por um dos maiores maquiadores de todos os tempos.

O que fazer sem Danny Striepeke?

Ajude-me Película! Eu lhe suplic

“Achados e Perdidos”: Noir de Copacabana (por Ricardo Calil para NoMinimo)


“Achados e Perdidos”, filme de José Joffily baseado no romance homônimo de Luiz Alfredo Garcia-Roza, insere-se em um conjunto de produções recentes que tenta dar ao policial urbano uma feição brasileira. Fazem parte desse grupo filmes como “Bellini e a Esfinge”, “Buffo & Spallanzani”, “O Dia da Caça” e “O Homem do Ano”.

Entre todos esses títulos, “Achados e Perdidos”, que estréia hoje, é de longe o produto mais bem-resolvido. Como já havia demonstrado em “A Maldição do Sanpaku” (1991), Joffily tem pleno conhecimento e domínio das convenções do noir – gênero que sempre representa enorme desafio aos cineastas, por causa das intrincadas tramas, dos personagens ambivalentes, da sordidez dos ambientes.

Aliás, o principal mérito do diretor no novo filme – compartilhado com o autor do livro – foi compreender a importância da ambientação no filme policial. Ele encontrou nas ruas e inferninhos de Copacabana um cenário de ambigüidade e degradação ideal para criar um noir carioca. A cidade pulsa em “Achados e Perdidos” como em nenhum desses outros filmes brasileiros citados.

No centro da trama, está o detetive aposentado Vieira (Antônio Fagundes), que se torna suspeito da morte de sua amante, a prostituta Magali (Zezé Polessa). Ao mesmo tempo, um ex-colega de polícia que virou deputado (Genézio de Barros) reaparece do nada e passa a chantageá-lo para cometer um crime – obrigando Vieira a reviver fatos do passado que gostaria de esquecer. O ex-detetive só encontra algum conforto nos braços da jovem prostituta Flor (Juliana Knust), sem saber que ela esconde alguns segredos importantes, como o fato de ter sido amante de Magali.

Em um ano até agora bastante fraco no cinema nacional, “Achados e Perdidos” destaca-se por algumas qualidades cinematográficas básicas: o roteiro de Paulo Halm é sempre conciso e eficiente, a fotografia de Nonato Estrela consegue encontrar um certo lirismo na decadência de Copa, a direção de Joffily nunca se perde em firulas de estilo, nem em subtramas desimportantes.

No caso de um filme noir, ainda mais fundamental é a sólida construção da femme fatale. Apesar de Knust se revelar uma intérprete ainda verde (bastante inferior, por exemplo, a Patrícia Pillar em “A Maldição do Sanpaku”), seu rosto tem o mistério que esse tipo de papel exige – ao mesmo tempo de menina e mulher, ingênua e esperta, cabocla e cosmopolita.

Mas, apesar de todas essas qualidades, “Achados e Perdidos” fica alguns passos aquém da grandeza, uma constante na obra de Joffily, o diretor de “Quem Matou Pixote?” (1996) e “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (2002). O cineasta mostra grande competência para seguir as convenções do filme noir, mas também uma certa timidez para subvertê-las ou enriquecê-las. Ele parece se contentar com a tarefa de transpor esse gênero originalmente americano para as ruas do Rio de Janeiro, sem se mostrar interessado em dar alguma contribuição original a ele.

Na verdade, apenas um cineasta brasileiro se mostrou capaz de lançar um novo olhar ao filme policial nos últimos anos. Seu nome é Beto Brant, o diretor de “Os Matadores” e “O Invasor”. A julgar pelas incursões recentes pelo gênero, ele continuará sendo um caso de exceção.

quarta-feira, abril 26, 2006

Volver (por Arthur Dapieve para O GLOBO)


Vai longe o tempo em que se ia a Madri para assistir às touradas. Hoje, vai-se a Madri para assistir ao Real. Apesar de ser torcedor do Barcelona, programei minhas férias de modo a pegar os merengues jogando em casa, no Santiago Bernabeu, diante de 75 mil espectadores, contra o Bétis, na zona de rebaixamento. Tremendo zero a zero.

Com a exceção de Beckham, no banco, todos os craques estiveram em campo, inclusive os cinco brasileiros. Ronaldo, apenas no terço final da partida, no lugar de Raúl. A imprensa só livrou a cara do lateral-direito Cicinho, por uma bola na trave meio sem querer, no primeiro tempo, e um chute perigoso, já nos acréscimos. Tremendo zero a zero.

Quis o destino, porém, que eu atirasse no que vi e acertasse no que não vi. No exato dia em que cheguei a Madri estava estreando “Volver”, o 17 longa-metragem de Pedro Almodóvar, cuja aparição nas telas brasileiras está prevista para o segundo semestre. Foi assim que, no salão do Palacio de la Música, afinal assisti a um craque no auge da forma.

A despeito do nome, trata-se de um cinema inaugurado em 1928, construído num estilo entre o barroco e o art nouveau na Gran Vía, espécie de Cinelândia preservada de Madri. Um cinema de rua como os que desapareceram no Rio: bonito, enorme, dá para entrar na fila da calçada minutos antes da sessão e conseguir sentar confortavelmente.

Assistir a um Almodóvar num lugar daqueles teve uma significação especial. Senti-me cercado não só pelo seu primeiro público, mas por seus personagens. Porque, embora não seja madrileno de nascença, e sim manchego, como o Quixote, Almodóvar está para Madri assim como Woody Allen está para Nova York. Ou Fellini, de Rimini, para Roma.

Um americano radicado em Paris, Elliott Murphy, tem uma bela canção, chamada “Is Fellini really dead?”. Ela termina com os versos: “Eu, eu estou quietinho/ E prendendo a respiração/ E imaginando se Roma existe após a morte de Fellini.” É o caso de um dia, fôlego suspenso, nos perguntarmos se Madri ainda existirá depois que Almodóvar morrer.

“Volver” trata precisamente disso, de morte, memória e culpa. O diretor de 54 anos declarou ao diário “El País”, da capital espanhola: “Há um momento entre os 40 e os 50 anos em que a gente se detém, olha para frente e para trás. Para mim, este momento chegou aos 50. Voltei o olhar para trás, para a minha infância, e para adiante, para o tempo que me resta até a morte. O resultado de ambos os olhares são os meus dois últimos filmes.”

Depois de “Má educação” (2004), incômodo acerto de contas com o ensino religioso do período franquista, “Volver” retoma, sob um ângulo diferente, o tema do abuso sexual. Nele, Raimunda (Penélope Cruz) luta para criar a filha adolescente, Paula (Yohana Cobo), enquanto o marido desempregado bebe cerveja e vê futebol pela TV. Certo dia, como a mente ociosa é o jardim do diabo, ele tenta estuprar Paula, que o mata com uma faca de cozinha. Raimunda esconde o corpo dentro da geladeira de um restaurante fechado.

Não estrago o prazer de ninguém contando isso. Este é, por assim dizer, apenas um dos dois pressupostos do filme. O outro é a aparição da mãe de Raimunda, Irene (Carmen Maura), à sua outra filha, Sole (Lola Dueñas). Tudo normal, a não ser pelo fato de que Irene morreu anos atrás, abraçada ao marido, num incêndio na vila natal da família, na Mancha. A tensão da volta dos mortos para acertar suas contas assombra “Volver”. Como se lê, e se verá, “Volver” é um filme de mulheres. As estrelas são as quatro atrizes mencionadas e mais Blanca Portillo, que vive uma prima doente, Agustina. O desempenho de todas é nada menos que brilhante. Penélope Cruz está muito bem também noutro sentido: linda, a maquiagem quase sempre borrada, surpreendentemente peituda (o que vale piadinha no filme) e ainda dublando uma versão flamenca para o tango “Volver” (a voz mesmo é de Estrella Morente). Dir-se-ia que Almodóvar a filma com volúpia.

A atriz de 31 anos, que já trabalhara com o diretor em “Carne trêmula” (1997) e em “Tudo sobre minha mãe” (1999), declarou na entrevista de capa da edição de março-abril da revista “ClubCultura”, da Fnac espanhola: “(...) Creio que Pedro é o retratista da mulher por excelência. Conhece a alma e a cabeça da mulher melhor que ninguém, porque é um observador muito bom e lhe interessa a complexidade da mulher”. O filme atesta isso.

Embora Almodóvar enxergue “Má educação” e “Volver” no mesmo movimento existencial, o novo filme está, pela extrema delicadeza, tão próximo dele quanto do anterior “Fale com ela” (2002). Os três, aliás, se seguiram à mui sentida morte da própria mãe do diretor, dona Paquita. Como a dor é boa conselheira da criação, o cinqüentão Almodóvar tem feito filmes bonitos de chorar, pelo perfeito equilíbrio entre comédia e drama, uma potencializando o outro. “Volver” talvez seja o melhor de todos. Ao final da sessão no Palacio de la Música, um mês atrás, segui a platéia madrilena: aplaudi, comovido. Olé.

sábado, abril 22, 2006

Notas rápidas sobre um filme que não merece sequer uma crítica bem redigida (por Chico Marques para o Trupe da Terra)


As notas a seguir foram redigidas logo depois de assistir a "Instinto Selvagem 2", assim que cheguei em casa. Ou seja, ainda sob o impacto deste que é, desde já, um dos maiores abacaxis, e também uma das sequências mais decepcionantes produzidas rm Hollywood nos últimos anos. Achei que se me desse ao trabalho de estruturar o texto dentro dos padrões habituais, acabaria permitindo que o meu desgosto e a minha indigação pelo que vi na tela do cinema se dissipassem. Sendo assim, optei por trazer a vocês, em vez de um texto corrido, um breve rascunho enraivecido -- ou, para usar um termo do grande poeta Mário Faustino, o "cosmo sangrento":

- Em "Instinto Selvagem 2", Sharon Stone conseguiu reduzir Catherine Tremell, uma das mulheres mais fascinantes da história do cinema, a uma viúva negra qualquer, uma serial killer patética, que fica se justificando o tempo todo porquê mata para elaborar esboços de tramas para seus romances. A coisa toda beira o ridículo. Onde já se viu um romancista que precisa viver suas próprias tramas às últimas inconsequências, para conseguir desenvolvê-las, e então finalmente escrever sobre elas? Que diabo de psicopatia seria essa? Alguém conhece? Uma coisa é certa: um workshop litarário comandado por ela deve terminar sem sobreviventes...

- Por conta dessa e de outras coisas, Catherine acaba caindo vítima de uma infinidade de psicologices que só fariam sentido em termos dramáticos se o filme seguisse o tempo todo no ritmo frenético de "graphic-novel" da sequência inicial (do babado forte no carro em alta velocidade). Mas para isso a personagem principal não poderia ser em hipótese alguma a (outrora) enigmática Catherine Tremell. Enquadrá-la numa camisa de força como essa equivaleria a desqualificar o personagem. E não é que foi exatamente isso que Sharon fez com ela?.

- A propósito, onde já se viu uma escritora de "pulp-fiction chic" como Catherine Tremell conseguir entrar tão facilmente no fechadíssimo círculo psiquiátrico londrino, e de quebra conseguir iludir toda uma junta de psiquiatras de primeiro time, como a que circula pelo filme, e também pela "vagina dentatta" da protagonista...

- O plot de "Instinto Selvagem 2" segue o mesmo padrão de ruindade da maior parte dos filmes de suspense da última safra de Hollywood, como "Derailed" e outros. O roteiro é insípido e esquálido, o que é inaceitável para a sequência de um filme já clássico, que demorou 15 anos para ser finalmente realizada.

- O desperdício de recursos em "Instinto Selvagem 2" chega a ser vergonhoso. Por mais que Sharon Stone esteja linda aos 48, e com tudo em cima, é inegável que ela se atrapalhou bastante como produtora nessa empreitada. Cometeu o erro terrível de demitir David Cronenberg da direção de "Instinto Selvagem 2" por não concordar com suas idéias sobre o projeto. Com isso perdeu a chance de ter no comando do filme um dos dois únicos diretores americanos -- o outro é Sam Raimi -- capazes de correr atrás do vigor do original de Paul Verhoeven e da complexidade existencial de Catherine Tremell, podendo até -- quem sabe -- elaborar uma sequência superior ao filme original, porquê não?. Mas, em vez disso, Sharon preferiu contratar um diretor inexpressivo, que fez tudo o que ela mandou fazer, inclusive não se atrever a dirigí-la. E, graças a isso, Sharon acabou nos brindando com um show insuperável de canastrice aguda -- algo contrangedor para uma atriz que já deu diversas demonstrações de talento indiscutíveis, em filmes como "Casino" de Martin Scorsese, "A Musa" de Albert Brooks e "Flores Partidas" de Jim Jarmush. E isso, infelizmente, não tem desculpa. Nem conserto.

- Como se tudo isso não bastasse, nem as cenas de sexo do filme conseguem lembrar o "punch" das do filme original, de Paul Verhoeven. Que pode ter mil defeitos como diretor de cinema, mas sabe filmar trepadas selvagens como poucos. Arnaldo Jabor -- outro que adora(va) filmar gente trepando -- é grande admirador dele. Tanto um quanto o outro concordam que tanto o cinema quanto a fotografia foram inventados sob a motivação de conseguir registrar em imagens o ato sexual.

- Para não dizer que não tem nada que preste no filme, são lindas as imagens de Londres, até mesmo aquelas em que aparece aquele prédio fálico em destaque, onde o psiquiatra tem consultório. Cá entre nós, qualquer psiquiatra que ousasse montar consultório num prédio daqueles deveria ser expulso da Comunidade Psiquiátrica Britânica. Por desacato aos princípíos da psiquiatria.

- Parece que ao longo desses 15 anos, Catherine conseguiu contornar as atitudes bipolares que faziam dela uma personagem enigmática, aparentemente descontrolada e fascinante no filme anterior. Agora ela parece estar bem mais centrada, e muitíssimo mais letal. O que resulta num verdadeiro desastre, na medida em que reduz a personagem a um mínimo denominador comum inaceitável. Todo o mistério e a sexualidade ostensiva -- e, ao mesmo tempo, graciosa, de Catherine Tremell, o arquétipo da "California Girl Gone Bad", que permearam o "Instinto Selvagem" original do início ao fim -- se perderam por completo nesse segundo filme, restando apenas um travesti lamentável do que ela foi 15 anos atrás. Convenhamos: um personagem como este não merecia uma nota fúnebre como esta.

- Para finalizar, o termo que melhor define esse "Atração Fatal 2": "fatalmente frouxo".

Jean-Claude Carrière, O inconformista (por Rodrigo Fonseca para O Globo)


1968. Um francês que se tornaria um mito entre os aspirantes a roteiristas encontra um jovem cineasta tcheco exilado que viria a surpreender Hollywood com um certo “Um estranho no ninho” (1975). Naquele ano de emblemáticas revoluções contraculturais, Jean-Claude Carrière, cujo currículo ostentava o roteiro do cultuado “A bela da tarde” (1966), dividiu apartamento com Milos Forman. Em noites regadas a muita cinefilia, Carrière ouviu o amigo diretor contar detalhes de sua sofrida vida em Cáslav, na antiga Tchecoslováquia, agravada após a morte dos pais em Auschwitz, e complicada ainda mais numa juventude submetida aos padrões educacionais comunistas. Levou tempo até que Forman conseguisse exorcizar todos aqueles fantasmas. Mas Carrière aposta que na estréia de “Goya’s ghosts”, o recém-filmado longa-metragem que agregou os talentos desses dois velhos amigos, chagas do passado serão fechadas.

— Milos foi criado no sistema comunista tcheco, que foi, à sua maneira, uma modalidade de inquisição. E é dela que eu falo no roteiro de “Goya’s ghosts”. Uso o universo do pintor espanhol Francisco Goya para falar de um extremista e das conseqüências de seus atos — diz o veterano roteirista de filmes de Luís Buñuel (“O discreto charme da burguesia”), Andrzej Wajda (“Danton — O processo da revolução”) e Volker Schlöndorff (“O tambor”) em entrevista por telefone ao GLOBO.

O extremista a que o autor de “A linguagem secreta do cinema” — peça básica em qualquer biblioteca cinematográfica que acaba de ser relançada pela Nova Fronteira — refere-se é o Irmão Lorenzo, um monge vivido pelo espanhol Javier Bardem. Na trama, ambientada no fim do século XVIII, logo após a Revolução Francesa, Goya (o sueco Stellan Skarsgärd, de “Ondas do destino”) elege uma bela jovem (Natalie Portman) como musa. Mas Lorenzo, inconformado com aquela relação, vai infernizar a vida da moça até que ela seja presa por heresia.

— Goya é um pouco um coadjuvante nessa história. Eu inventei os personagens do monge e da musa para fazer o público refletir sobre a intolerância e o quanto ela altera a personalidade e a sanidade de um homem, no caso Lorenzo — diz Carrière, que transformou os abusos da Inquisição no assunto do romance “A controvérsia”, encenado nos palcos brasileiros com Paulo José e Matheus Nachtergaele.

Ainda em fase de montagem, mas já com estréia agendada no Brasil (fevereiro de 2007), “Goya’s ghosts” é a segunda parceria entre Carrière e Forman. “Valmont”, de 1989, foi a primeira.

— A maior lição que aprendi com Buñuel foi a idéia de que a imaginação não tem limites. Trabalhar na América contradiz isso. Mas Milos foi para lá e conseguiu fazer os filmes que queria, defendendo a liberdade. Ao falar de Goya, neste momento, ele só reforça este aspecto em sua obra, pois ele estará falando de um pintor que retratou de mendingos a aristocratas sem distinção, refletindo sobre tudo aquilo que seus olhos registravam e seu pincel imortalizava — diz.

Amigo do diretor Walter Salles, cuja filmografia ele diz acompanhar com assiduidade, Carrière não tem acompanhado com freqüência a produção brasileira dos últimos anos. Viu “Carandiru”, mas só em DVD, o que não tirou seu entusiasmo pelo trabalho de Hector Babenco, para quem escreveu o filme “Brincando nos campos do senhor” (1991).

— “Carandiru” é muito bem-feito. Gostei do filme.

Antenado com a situação audiovisual brasileira, mesmo sem ir muito ao cinema, ele se diz feliz de saber que o Brasil continua a filmar depois do período de silêncio causado pela extinção da Embrafilme, na era Collor.

— Fiquei muito feliz quando soube da retomada da produção cinematográfica brasileira, depois do hiato que aconteceu entre 1990 e 1994. Mas é inacreditável para mim saber que um país tão grandioso quanto o Brasil não é capaz de desenvolver um mercado de cinema forte. Até o Irã conseguiu. Aquele país tão pequeno se comparado ao de vocês tem uma produção que alcança não apenas festivais internacionais, como os circuitos de exibição do mundo inteiro. Como é que vocês não conseguem? — pergunta Carrière, que parece otimista em relação ao cinema francês contemporâneo. — Pelo menos quatro filmes feitos por ano na França são bons. E sempre há um que costuma ser ótimo. O que já considero satisfatório.

O roteirista destaca, entre as revelações de seu país, o parisiense Jacques Audiard, que no início deste ano ganhou oito Césars (o Oscar francês), incluindo os de melhor filme e melhor diretor, com o drama existencial “De tanto bater, meu coração parou”. François Ozon, do bem-sucedido musical “Oito mulheres”, é outro que chama sua atenção. Já os veteranos...

— Os jovens, principalmente as mulheres, estão fazendo um bom trabalho pelo cinema francês. O que é importante, porque Truffaut se foi e estamos velhos para continuar a produção. Eric Rohmer, por exemplo, já está com 81 anos. Não se pode exigir que ele continue a nos surpreender com seus filmes. Claude Chabrol, por sua vez, ainda faz bons filmes, um pouco por trabalhar com o inesperado. Eu não temo por nós. Temia pelos italianos, que tiveram o melhor cinema do mundo, mas perderam sua força com a entrada de Berlusconi no poder, com sua política estúpida. Eu ainda espero ver o renascimento daquela cinematografia. Assim como espero ver o fortalecimento da produção brasileira.

O cinema sensorial de Terence Malick (por Ricardo Calil para No Minimo)


Terrence Malick é das personalidades mais fascinantes da história do cinema. Em 32 anos, o cineasta norte-americano dirigiu apenas quatro filmes. Mas não foi por falta de reconhecimento que ele teve uma carreira tão bissexta. “Terra de Ninguém” (1973), seu primeiro filme, foi saudado como uma das melhores estréias do cinema americano. “Dias de Paraíso” (1978), o segundo, deu-lhe o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Passaram-se duas décadas até que ele lançasse “Além da Linha Vermelha” (1998), que não foi um sucesso de público, mas encantou a crítica mais uma vez. E aí chegamos a “O Novo Mundo” (2005), que entra em cartaz hoje no Brasil.

A razão dessa produção tão escassa está no comportamento arredio e no gosto pela reclusão de Malick, uma espécie de versão cinematográfica de J.D. Salinger (o excêntrico e recolhido autor de “O Apanhador no Campo de Centeio”). Malick foi assim definido pelo crítico americano Leonard Matlin: “Como Greta Garbo ensinou, a evasão e a inatividade podem alimentar uma lenda; assim Malick tornou-se uma das figuras mais intrigantes do cinema recente, tanto por seus longos períodos sabáticos quanto por seus impressionantes filmes”.

Se estilo é tudo, como pregam alguns, Malick é um dos maiores estetas do cinema. No caso hipotético de um cinéfilo entrar desavisadamente em um filme do diretor, saberá de quem se trata com menos de um minuto de projeção. Os filmes de Malick não se parecem com os de nenhum outro cineasta. Em um primeiro momento, eles impressionam pela beleza atordoante de seus planos longos, rarefeitos e contemplativos. Em seguida, por uma certa qualidade onírica, como se a câmera captasse não a reconstrução da realidade, mas a de um sonho do cineasta sobre a realidade.

Alguns críticos acusam Malick de maneirismo. Mas o termo me parece pouco apropriado. O cineasta não recheia suas narrativas com artifícios de estilo para vendê-los como arte. No seu caso, o artifício é o filme – e vice-versa. Seus filmes não são “sobre” o amor ou “sobre” a guerra. Mas sobre como seus personagens captam subjetivamente esses acontecimentos, como eles tentam dar conta de seus sentimentos e encontram reflexos dessas sensações na natureza.

Todos esses elementos estão presentes em “O Novo Mundo”. A princípio, poderia-se dizer essa é a versão de Malick para a história de Pocahontas. Afinal, o filme mostra a relação afetiva entre a indiazinha americana (a estreante Q’Orianka Kilcher, filha de suíça com peruano) e o capitão inglês John Smith (Colin Farrell), no início da colonização da América, no século 17. Mas não espere nada parecido com a versão do desenho da Disney. A melhor definição para o filme veio de um crítico americano: “Pocahontas sob o efeito de ácido”.

“O Novo Mundo” é uma história de amor e de encontro entre dois mundos distintos. Mas é muito mais do que isso. Malick não se apóia em oposições fáceis como a do bom selvagem versus o predador civilizado. Ele mostra diferenças entre Pocahontas e Smith por meio de suas relações com o ambiente – de naturalidade e comunhão, no caso da índia; de encantamento e desconcerto, no do capitão.

Em uma obra tão idiossincrática quanto a de Malick, fica difícil explicar as razões pelas quais “O Novo Mundo” é um filme menos satisfatório do que seus três anteriores, apesar de se basear nos mesmos princípios. Não é possível usar argumentos como “a fragilidade da história” ou “personagens mal construídos”, porque eles não fazem sentido para a obra do diretor.

O cinema, para Malick, é antes de tudo uma experiência sensorial. Portanto, é preciso tentar entender certas sensações que o filme desperta para melhor criticá-lo. Em primeiro lugar, vem o deslumbramento. Em seguida, porém, surge um certo incômodo. Certas imagens e palavras de “O Novo Mundo” são de uma beleza tão evidente (ou óbvia, se preferir) que se aproximam perigosamente da cafonice.

Claro, o filme de Malick ainda é bastante superior à média da produção atual, pelo simples fato de que tem personalidade, assume riscos e não teme o ridículo. Ao assistir a “O Novo Mundo”, não há dúvidas de que estamos diante do trabalho de um artista. Mas eu não saberia dizer se esse quadro em movimento deveria ser exposto no Museu de Arte Moderna ou na feira hippie de Copacabana.

The American Dream, according to a German director (by Laura Emerick for The Los Angeles Times)


Wim Wenders has a way of catching you off-guard. Here to promote his latest film, "Don't Come Knocking," the director meets me with the opening line: "Are you related to Emmerichs of Frankfurt?" His crisply Teutonic enunciation makes it clear that he's referring to the original German spelling of the surname.

Well, yes, according to ancestral lore, everyone with this last name is related somehow. Anticipating the next question, I volunteer that the maternal side of my family hails from south of the border.

"Ah, German and Mexican, that's a good combination. It was responsible for the birth of mariachi music," says Wenders, who then launches into a mini-lecture about Maximilian, the Austrian-born emperor of Mexico (1864-67), under whose rule the ensembles now associated with Mexico's defining sound first sprang up.

The whole exchange wouldn't be out of place in Wenders' quirky "Don't Come Knocking," which abounds with quixotic moments, including a film within the film that looks like a remnant from the old Republic Studios backlot.

"Don't Come Knocking," shot in 35 days for $10 million, reunites Wenders with his "Paris, Texas" partner Sam Shepard, who wrote the script and also stars as Howard Spence, a burned-out actor who decides to flee from the set of his latest film, "Phantom of the West." He embarks on a journey of redemption and self-discovery that starts in Moab, Utah -- the iconic locale celebrated in the films of John Ford -- and continues through remote outposts such as Elko, Nev., and Butte, Mont. Whether nursing emotional wounds or trying to settle old scores, Spence represents the archetypal Wenders hero: "A man, alone and isolated, wanders the cities of the world in search of truth either large or small" -- as one critic once put it.

One of the greatest directors of the new German cinema movement, Wenders, 60, loves the American landscape, especially the Old West, and has shot many of his films here, including "Hammett" (1982), "The End of Violence" (1997), "Land of Plenty" (2003), as well as "Paris, Texas" (1984).

Wenders credits 19th century author Karl May, who never left Germany but wrote over 60 books, for his love of the Old West. "Through his work, I felt the West belonged to me," he says. "Eighty percent of my hometown was destroyed after World War II. Germany was down and defeated and unsure of itself. It led to a joyless atmosphere. Then I realized that joy came from American culture -- movies, comic books, Westerns. All confirmed my belief that there is a promise in America."

Another favorite author led Wenders to Butte, Mont., the former boomtown now left desolate, which serves as the central locale of "Don't Come Knocking." "In his first novel, Red Harvest, Dashiell Hammett based the mythical town of Poisonville on Butte," he says. "I love that city, and I think it shows in 'Don't Come Knocking.' I wanted to film there for 25 years, and I was hoping that no one else would get there first. Aside from Evel Knievel" -- referring to the motorcycle daredevil and Butte native -- "no one ever did."

Knievel is just one of several unexpected names that pops up in Wenders' conversation: Bob Dylan. Bono. Anthony Mann. Because of his modified pageboy, Wenders recalls another unexpected figure: the madcap mod Peter Sellers, resplendent in an outre wig, in "What's New, Pussycat?" (1965). And with his interesting past (six marriages) and eccentricities (a penchant for wearing mismatched shoes), Wenders occasionally can be just as wiggy.

For instance, he cites Mann (1906-67) -- not Ford or Howard Hawks, as might be expected -- as his favorite Westerns director. Best remembered for his work with James Stewart ("The Naked Spur" and "The Man From Laramie"), the versatile Mann also made film noirs and historical epics. "Mann is the first director whose work I saw in its entirety, so I got to know his craft," Wenders says. "He's still the best. I love his 'Man From the West' and 'Bend of the River.' He really shot in these places. He has such an incredible sense of geography, but he also makes fairy tales."

With segments bordering on the surreal, "Don't Come Knocking" approaches the realm of the fairy tale at times. Witness the extended scene where Howard sits on a couch, heaved from a second-story window by his newly discovered son, in the middle of a deserted street. The character of Howard, however, is rooted in reality.

"Sam and I based him on a real-life actor, but I won't reveal the name," Wenders says. "It's a self-indulgent existence. Show biz is made for that. In the movie of his own life, Howard is not even a supporting character."

That can't be said about Wenders, who remains involved in virtually aspect of his projects. Now that he's made three films back to back, however, he's looking to take a break.

"It took so long to make this film [five years], I really exhausted myself. I think I've said everything I have to say about America."