terça-feira, janeiro 31, 2006

Woody Allen: ‘Estou sempre em forma’ (por Rodrigo Fonseca para O GLOBO)


Lá se vão 54 verões desde que o filho do casal Stewart Konigsberg (ele, chofer; ela, florista) descobriu que fazer rir seria o único caminho que um garoto judeu feioso, de 1,65m e magro de dar dó teria para não passar fome, fazer amigos e seduzir mulheres. Em 1952, aos 16 anos, começou a escrever gags. Nunca mais parou. E o tempo se encarregou de fazer dele um sinônimo de comédia inteligente. Mas, ao aportar na casa dos 70, o pequeno Konigsberg, quer dizer, Woody Allen, encontrou numa amarga história de ambição o filme que sempre sonhou fazer. Ambientado na Inglaterra, “Ponto final” (“Match point”), agendado para o próximo dia 10 no cronograma do circuito carioca, não se interessa pelo riso alheio. No máximo, pelos nervosos esgares do professor de tênis Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers), pobretão que ascende socialmente ao casar com uma ricaça e que vê sua imagem ameaçada ao se envolver com uma atriz (Scarlett Johansson). Há anos, filme algum de Allen era tão incensado. Não fosse pela torcida pró-“O segredo de Brokeback Mountain”, haveria quem apostasse que o Oscar seria dele (ainda que ele não dê bola para o prêmio). Nesta entrevista por telefone ao GLOBO, o diretor explica seus acertos neste flerte com o drama.

Desde 1993, quando lançou “Misterioso assassinato em Manhattan”, seu cinema se afastou inteiramente do enfoque dramático e existencialista que o senhor abraçou nos anos 80. No entanto, sua volta ao drama com “Ponto final” vem sendo saudada como uma renovação. Isso denota um certo descaso da crítica com a comédia?

WOODY ALLEN: O que me leva a fazer um filme não é o que esperam de mim, e sim uma determinada idéia nova que de repente me ocorre. Se tenho uma idéia engraçada, faço uma comédia. Se penso com música, faço um musical. O que me ocorre dita como será o filme. “Ponto final” nasceu de uma idéia dramática. Não que eu tivesse tido um pensamento triste. Pensei em algo humano, como uma história sobre paixão e sorte.

Desde Cannes, “Ponto final” foi atrelado a um rótulo de “o retorno de Allen à boa e velha forma”. O senhor o aceita?

ALLEN:De modo algum. Não há “retorno à forma”. Estou sempre em forma. Algumas vezes, há modelos que não são populares. Críticos e o público tendem a julgar tudo pela popularidade, mas eu faço os filmes que quero fazer, sem me preocupar se eles serão ou não populares. Por isso eu sinto que estou sempre em forma. Porque filmo sempre o que quero, sem me preocupar se isso vai agradar ou não. Mas isso tem conseqüências negativas. Exatamente por não me preocupar com a expectativa alheia, tenho muita dificuldade na hora de conseguir financiamento para os meus filmes. Pela atitude independente que adotei, tenho sempre que lutar duramente para conseguir completar o orçamento de meus filmes. Sobre essa coisa de “estar em forma”, o que eu poderia dizer de “Ponto final” é que ele é o meu melhor filme. Não o melhor em muito tempo, mas o melhor de todos os que fiz.

Martelo batido por ele então?

ALLEN: Olha, eu não sou objetivo em julgamentos. Há muitos filmes que fiz de que não gosto, filmes em que acredito não ter dado o melhor que poderia. A idéia era boa, podia ter saído um grande filme, mas eu fiz escolhas erradas. Em “Ponto final”, acho que todas as decisões que tomei foram certas. Tive sorte. Pude fazer tudo o que precisava.

O senhor diz que tem dificuldades para encontrar financiamento. No entanto, há seis anos, o senhor conta com o apoio da Dreamworks, cujo cabeça é o midas Steven Spielberg. Essa associação não facilitou sua vida?

ALLEN:A Dreamworks não me financia. Ela apenas distribuiu meus filmes. Eu trabalhei anos com eles, e foi uma ótima experiência, cercada de muito profissionalismo e carinho. Eles foram justos quando me distribuíram e apoiaram alguns dos meus filmes.

Peter Bogdanovich, diretor de “A última sessão de cinema” e contemporâneo seu na geração que revolucionou o audiovisual americano nos anos 70, disse certa vez que, quando o “Tubarão” de Spielberg abriu sua bocarra, a inteligência de Hollywood desceu pela goela dele abaixo. Algo melhorou desde então?

ALLEN:Não vejo os filmes de Hollywood hoje com deslumbramento. Há uma contradição no cinema americano. Há maravilhosos roteiristas, atores e diretores lá. Mas eles têm de enfrentar uma difícil batalha para fazer seus filmes. Na indústria cinematográfica americana corre muito dinheiro. Como eles gastam muito nos filmes, estão interessados em lucrar muito, sempre assombrados pelo medo de perder as grandes somas que investiram. Isso dificulta os cineastas que não estão interessados em trabalhar com superproduções ou dirigir filmes que rendam milhões de dólares. A maioria dos filmes caros que vi não eram bons. E os diretores que criaram impacto na década de 70 enfrentam hoje muitos obstáculos para concluírem seus filmes.

Até Martin Scorsese, que dirigiu duas superproduções seguidas com custo acima de US$ 100 milhões (“Gangues de Nova York” e “O aviador”), sofre com isso?

ALLEN:Não acredito que Marty se encaixe nessa situação. Marty é um diretor maravilhoso que, como Stanley Kubrick (diretor de “Laranja mecânica”), gosta, algumas vezes, de trabalhar em produções faustosas, caras. No caso dele, essa é uma opção artística. Ele não é dos que trabalham com grandes orçamentos apenas para engordar a conta bancária dos estúdios. Ele faz superproduções apenas porque sua visão artística às vezes envolve idéias que consomem muito dinheiro. Muitos diretores, que não são autores, trabalham em projetos custosos apenas em nome do dinheiro.

Scarlett Johansson, estrela de “Ponto final”, foi indicada ao Globo de Ouro de melhor coadjuvante e está cotada para o Oscar. O senhor já fez um segundo filme com a atriz, a comédia “Scoop” (com ela e Hugh Jackman). Scarlett virou sua musa?

ALLEN: Ela é uma grande, graaaande atriz, com a força da espontaneidade. Scarlett é uma pessoa maravilhosa, inteligente e sensual. E faz comédia muito bem. Acabamos de rodar “Scoop”, que é muito divertido, e ela me serviu muito bem. Assim como serviu muito bem a um enredo dramático como o de “Ponto final”. E ela é só uma garotinha. Tem só 21 anos. Acredito que, se tomar as decisões certas daqui para frente, Scarlett pode se tornar uma atriz muito importante. E por muitos anos.

Por que o senhor vem evitando encarnar o herói romântico de seus filmes?

ALLEN: Agora eu tenho 70 anos. Scarlett Johansson, por exemplo, está na casa dos 20. Soaria inverossímil uma relação amorosa entre nós na tela. Pareceria um erro de escolha de elenco.

Desde Cannes, a imprensa internacional alega que “Ponto final” é parecido demais com “Uma tragédia americana”, clássico da literatura naturalista assinado por Theodore Dreiser. O senhor se inspirou no livro ou não?

ALLEN: De fato, não. “Ponto final” se baseia em uma idéia minha sobre um homem que tem de matar alguém bem próximo porque precisa manter as aparências. O livro de Dreiser é uma proposta diferente. “Uma tragédia americana” se baseia em uma fato real que aconteceu nos EUA. Há semelhanças entre nossas histórias, porque ambos trabalhamos com uma idéia de mobilidade social e ambição. Mas minha motivação foi originada da idéia de que um assassinato encobre algo que você quer manter.

Suas primeiras incursões pelo drama buscavam uma inquietação parecida com a que há na obra do sueco Ingmar Bergman, que o senhor já afirmou ser um de seus ídolos. Já assistiu ao último longa dele, “Saraband” (2003)?

ALLEN: Você sabia que “Saraband” nunca entrou no circuito de cinema nos EUA? Foi lançado apenas em VHS aqui. Preciso conseguir uma fita aqui para poder vê-lo (no Brasil, cogita-se a estréia de “Saraband” em abril).

A crítica internacional é quase unânime quando tem de escolher uma palavra para definir o senhor: gênio. O título lhe agrada?

ALLEN: Isso é engraçado. Gênio, no show-business , no cinema e no teatro é uma palavra banalizada, que é aplicada com mais freqüência do que deveria. Mas, quando se sabe que Leonardo Da Vinci foi um gênio, Beethoven foi um gênio, Shakespeare também, então a idéia de que você possa ser um acaba parecendo tola. Eu sou, no máximo, alguém que tem um talento. E que trabalha duro. Se eu sou um gênio, então Rembrandt é o quê?

segunda-feira, janeiro 30, 2006

A crucificação de Spielberg (por Ricardo Calil para NoMinimo.com)


Cineasta de maior sucesso comercial da história, Steven Spielberg sempre foi um mestre da narrativa cinematográfica e da manipulação das emoções do espectador. Mas sua obra nunca atingiu a maturidade completa por conta de algumas deficiências do diretor. Primeiro, uma visão inocente do mundo, uma perspectiva infantil que domina mesmo seus filmes adultos, uma divisão um tanto maniqueísta de personagens entre vilões e mocinhos.

Depois, há o enorme desequilíbrio entre os elementos espetaculares e os intimistas em seus filmes. Para cada brilhante seqüência de ação, em que ele demonstra domínio completo da arte de combinar sons e imagens, existe uma constrangedora cena sentimental, que revela uma compreensão pouco profunda dos dilemas e contradições humanas.

Com “Munique”, que estréia hoje no Brasil, Spielberg superou boa parte desses problemas e realizou seu filme mais maduro até hoje (não o mais essencial, posto que permanece ocupado por “Tubarão”). O cineasta virou, enfim, gente grande.

Baseado no livro “A Hora da Vingança”, de George Jonas, o filme acompanha a missão de cinco agentes secretos para eliminar os terroristas palestinos responsáveis pelo assassinato de 11 atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, de 1972. Segundo essa versão, a ação foi determinada pela então primeira-ministra Golda Meir, mas foi planejada para não deixar rastros que a ligassem ao governo de Israel.

Liderados por Avram (Eric Bana), filho de um herói de guerra israelense e pai de uma menina recém-nascida, o grupo inicia sua missão com sucesso, matando alguns dos líderes do Setembro Negro, grupo terrorista que estava por trás dos atentados. Aos poucos, porém, Avram entra em crise de consciência e passa a questionar se essa política de “olho por olho, dente por dente” é a melhor maneira de combater o terrorismo.

Spielberg deixa muito claro que busca um paralelo entre aquele momento – o atentado em Munique foi um marco histórico por levar o terrorismo ligado à questão palestina para fora dos domínios de Israel – e a realidade atual – com a guerra ao terrorismo desencadeada pelo governo americano depois dos atentados de 11 de Setembro. Se alguém duvidar de que essa é a intenção do cineasta, basta ver que prédios aparecem ao fundo na cena final do filme.

Comentários metafóricos sobre o presente norte-americano vêm sendo a tônica dos últimos filmes de Spielberg. Em “Minority Report” (2002), o cineasta critica a condenação de pessoas por crimes ainda não-cometidos, em um ataque indireto à política de Bush que incentiva a prisão de suspeitos sem julgamento. Em “O Terminal” (2004), ele questiona os limites impostos à circulação de estrangeiros nos EUA, em uma censura às restrições das liberdades civis também determinadas pelo atual governo.

Já em “Munique”, a grande pergunta colocada por Spielberg é: o terrorismo deve ser combatido com a mesma moeda da violência ou deve ser enfrentado com armas políticas e diplomáticas, os Estados podem reproduzir a mentalidade dos inimigos ou precisam buscar uma atitude superior? É uma questão válida para o governo israelense de 30 anos atrás e para o americano de hoje, para a moral judaico-cristã e para a protestante.

O fato de o cineasta mais famoso do mundo falar de questões urgentes da atualidade, em vez de criar mais uma fábula escapista, é salutar por si só. Mas, em “Munique”, seus méritos vão além da escolha do tema e chegam ao tratamento da história, que alcança uma complexidade inédita de sua obra.

Para começar, o cineasta elege como protagonista um homem em crise de consciência, muito diferente dos heróis sem hesitações dos filmes anteriores. Talvez pela primeira vez em sua carreira ele prefere fazer perguntas do que oferecer respostas prontas. Depois, ele dá voz não apenas aos israelenses, como também aos palestinos, sem igualar os crimes cometidos pelos dois lados no caso de Munique (ao contrário do que prega parte da crítica).

Por fim, o diretor chega a um equilíbrio notável entre o Spielberg espetacular, nas seqüências de assassinato dos terroristas, e o Spielberg intimista, nos dramas pessoais dos agentes secretos. Para tanto, deve ter sido importante a colaboração do dramaturgo Tony Kushner, de “Angels in America”, no roteiro.

Não chega a ser uma surpresa completa o resultado de “Munique”, porque ele faz parte de um processo de amadurecimento iniciado em filmes como “Prenda-me se For Capaz” (2002) e “O Terminal”. Mais surpreendente é parte das reações à produção. Em vez de discutir as questões fundamentais levantadas pelo filme, parte da crítica prendeu-se a detalhes pouco significativos de infidelidade histórica para criar polêmica, como se a obra fosse um documentário, e não uma abordagem pessoal do cineasta. Em vez de elogiar a tentativa de uma visão equilibrada sobre os conflitos no Oriente Médio, autoridades israelenses e palestinas acusaram o filme de ser favorável ao inimigo (o que possivelmente demonstra sua justeza).

Para um pedaço da comunidade judaica, Spielberg tornou-se um Judas da causa israelense com “Munique”. Mais adequado seria compará-lo, nesse caso particular, a Jesus Cristo, outro judeu crucificado antes por suas virtudes do que por seus defeitos.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Um trem para 2046 (por Joaquim Ferreira dos Santos para O GLOBO)



Ah, se Antônio Maria e Danuza Leão tivessem visto “2046 — Segredos do amor”. Sofreriam menos. Não teriam acordado de madrugada para injuriar as estrelas, não escreveriam depois como foram infelizes. Conformar-se-iam com o destino dos amantes, com essas fórmulas verbais feias que servem apenas para evitar o eu te odeio, desgraçada. Jogariam as mesóclises na parede, chamá-las-iam de lagartixa, morreriam de rir de uma construção dessas e partiriam para outra como nos é de destino. Assim. Fui. Assim, simples. Passar bem, sua megera. Quando quiser, pega o vestido vermelho que você esqueceu. Está no armário da empregada. Quando puder, devolve o DVD do Rappa que eu emprestei e você, Pixinguinha, não viu. Sem ressentimento. Há quem cante Orestes Barbosa. O amor é gema de ovo no copo azul lá do céu. Às vezes não há tanto bom humor disponível na farmácia do banheiro. Vá ao cinema. O melhor remédio para os males das paixões findas está no Arteplex. A felicidade mora no apartamento ao lado, o 2046. O problema é que ele sempre muda de hóspede. Antônio Maria. Danuza Leão. Diante de “2046” eles recordariam o que já estava escrito desde a primeira vez que se viram numa boate do Copacabana Palace. Pensariam melhor antes de abandonar as famílias e partir para a aventura. A impossibilidade amorosa ecoaria o chocalho da serpente nos cubos de gelo do uísque. Já estava escrito na poeira do big-bang. Não vai dar certo. As gigogas invadiram as praias para trazer a mesma mensagem aos que se aventuram pelo amor de verão. Só se engana quem quer. Dura um dia. Dois. Quatro anos. Depois pára de durar. É do jogo das algas marinhas e do dormir em conchinha. É da expectativa dos gemidos. Danuza. Maria. Não esqueceriam que o amor fecha as portas às três da madrugada e fica surdo, ei, garçom, aos pedidos de que se abra o bar para mais uma. Deveriam reconhecer. Há alguma inteligência nisso. Só pode. Não insistir na saideira e vitupérios de aniz. Suspirar. Reconhecer. Está de bom tamanho. O amor acaba. Com um tiro nos cornos, um bocejo na sobremesa, um grito de vagabunda. Acaba às seis da manhã, anunciado por uma cigarra de fuso descontrolado. É preciso ter ouvidos afinados para perceber os cacos-barcelos do coração despedaçando. Ouve só. Escuta essa. Eu conheço o caso de uma mulher que suspirava em ah. Numa noite dessas de verão quente gemeu em uh. Ela não ficou surpresa quando de manhã viu o vazio no travesseiro ao lado. O marido tinha notado. Foi-se. Eu vi “2046 — Segredos do amor” e vou ser sincero. Não há segredo algum no filme do chinês Wong Kar-Wai. As imagens trazem o mais moderno enquadramento fotográfico do cinema. De resto, é feito aquele torcedor com a placa, eu já sabia, comemorando o título do seu clube. Acaba. Nasceu para isso. Quem descrê? Com uma porta batendo, um telefonema de madrugada, um grito de eu não agüento mais, sua ordinária. O amor acaba. Paulo Mendes Campos também sabia e fez uma crônica liricamente-dolorosa, como lhe era de estilo, com o título. Se não acaba não foi amor. Foi biscate emocional. Dói. Fazer o quê? Faz parte da idéia. Acabar aqui e começar ali. A dialética dos barbudos aplicada ao que interessa na mais-valia dos sentimentos. Com a diferença de que o amor não vale nada. O amor é armadilha sem futuro, punhado de frases banais significando todas a mesma coisa, e essa coisa está no filme. Fica comigo esta noite, danada, chefona, gata extraordinária. Pessoas são diferentes. Não há nada mais diferente do que um jornalista do Cosme Velho e o jornalista chinês do filme. Já na hora de sofrerem calados a punhalada de suas meretrizes-pistoleiras, eles colocam na vitrola, ouçam o filme, uma gravação qualquer de “Perfume de gardênia”. Choram, os otários. Pessoas são diferentes, estou de acordo. Histórias de amor são todas iguais. Em “Grande Hotel” ou em Paul Auster. Os motoristas de ônibus, os jornalistas do segundo caderno do GLOBO. Todos gritam a mesma coisa que o chinês do filme. Volta. Me abraça. Em 2046, eis um dos motes do filme, o amor não doerá mais. Será prática entre andróides aperfeiçoados para levar as porradas da incomunicabilidade. A solidão na boa. Faltam 40 anos para que chegue 46 e se coloque em prática a sacada de Manuel Bandeira. Corpos se entendem, almas não. O filme é futurista, o amor é o mesmo desconforto de sempre. Cada um fala uma língua. Não há paz. Não há experiência que alivie o sofrimento do próximo desencontro. O amor é o tal carro com os faróis virados para trás, iluminando o passado e seu caminho já percorrido. A dor de ontem não alivia a de amanhã. Dói sempre mais. Peito partido, coração alquebrado, solidão-filha-da-mãe. Foi o que eu vi no filme e recomendo que cada um veja nele o que quiser. É triste. O amor é triste. Soluça patético como essas frases curtinhas. Eu te amo. Beija minha boca. Não me abandona. “2046”, o melhor filme da temporada, é de chorar com seu desapego ao que possa ser qualquer aceno de felicidade. A felicidade no filme não é sequer a gota do orvalho numa pétala de flor. Se a esperança existe, deixaram na mesa de edição. Chora-se muito. Na tela, na platéia. Em todos a impressão de que a única mensagem positiva é a do amor sem otimismo. Não dá para ter esperança em comunicar a paixão ao outro. Eu te desejo, ela não me deseja. Eis o diálogo que mais se ouve nas ruas. O poeta triste sentado na Praia de Copacabana me disse um dia. O amor é isso que você está vendo, zé-mané. Hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Em português já era incompreensível. Agora a melhor definição de amor vem em chinês. É cada vez mais complicado. Ninguém entende nada, mas eu quero ver de novo essa história. Muitas vezes. Crítico fosse, eu teria colocado o bonequinho aplaudindo de pé e chorando muito. Colocaria também uma bonequinha ao lado dando um tapa na cara do idiota. O bonequinho não aprende. Ninguém quer aprender. Se tirarem esse impulso de infelicidade de nossas vidas, ninguém sai mais de casa para trabalhar. É o que nos resta. Zumbis numa viagem para 2046, quando a memória de quem se amou não mais doerá. Ei, moço, faz favor. Um bilhete pra mim nesse trem. Sim. Sem volta.

domingo, janeiro 22, 2006

“Em Seu Lugar”: Um Magnífico Show De Atrizes (por Luiz Carlos Merten para o Estadao)



Está sendo um ano de grandes interpretações masculinas no cinema americano. Sem esforço, você pode apontar quatro ou cinco candidatos à indicação para o Oscar e depois conferir quantos vão concorrer ao prêmio da Academia de Hollywood - Philip Seymour Hoffman, por Capote; David Strathairn, por Good Night, and Good Luck; Joaquim Phoenix, por I Walk the Line; Ralph Fiennes, por O Jardineiro Fiel; Bill Murray, por Flores Partidas. As grandes interpretações femininas são mais reduzidas, mas você pode apontar agora, de uma tacada, duas possíveis candidatas a melhor atriz e uma coadjuvante - Cameron Diaz está ótima em Em Seu Lugar, o novo filme de Curtis Hanson, que estréia hoje, mas melhores, ainda, são Toni Collette, como sua irmã, e Shirley MacLaine, como a avó.

Curtis Hanson é um dos mais talentosos diretores americanos de sua geração. Começou como um aplicado profissional do cinemão, mas depois que redimensionou seu projeto de cinema com o poderoso Los Angeles - Cidade Proibida, não errou uma. Vieram, na seqüência, Garotos Incríveis, 8 Mile - Rua das Ilusões e agora esse magnífico Em Seu Lugar. No original, é In Her Shoes. A metáfora dos sapatos é muito forte no filme.

Toni é uma advogada totalmente dedicada ao trabalho, que se compensa de suas carências comprando sapatos. Cameron é a irmã estabanada que vive usando os sapatos da irmã - e, numa cena, vai para a cama com o único namorado que Toni conseguiu arranjar. Toni surta e a expulsa de casa. Sem rumo, Cameron descobre a existência de uma avó que nem sabia possuir. Instala-se na casa dela, a princípio para roubar. Ao longo de um processo que corria o risco de ser banal, mas é rico, a doidivanas assume a sua segunda chance e evolui como pessoa.

Toni e Cameron vivem essa ligação de amor e ódio, que tem origem na família disfuncional. A mãe sofria de perturbações mentais. Suicidou-se, mas, para todos os efeitos, a versão oficial é a de que morreu num acidente. O pai, traumatizado, afastou-se da sogra. Ambos se acusavam mutuamente, tentando responsabilizar o outro pela desestruturação mental que levou a mãe de Toni e Cameron à destruição.


É um dos temas mais velhos da ficção - a família. Douglas Sirk, homem de cultura refinada, grande diretor de melodramas, dizia que seu ideal era a tragédia grega, em que tudo se passa em família, num mesmo lugar. E essa família é idêntica ao mundo, vira o símbolo do mundo. Curtis Hanson, que se baseou num livro de Jenifer Weiner, também acredita na família como base de toda tragédia humana, mas trata de temperá-la com humor. E não fica preso a um só lugar. Segue uma irmã em Filadélfia, onde a trama é deflagrada, e a outra na Flórida, terminando por transformar os dois espaços num só.

Desde que ganhou o Oscar de roteiro (dividido com Brian Helgeland) por Los Angeles - Cidade Proibida, Curtis Hanson virou consultor no Sundance, tendo dado importantes sugestões a diretores de várias latitudes, incluindo o Brasil. Seu modelo de roteiro não é o de Syd Field, baseado em relações de causa e efeito, no qual o drama (ou a comédia) tem que obedecer a um esquema no fundo muito rígido. Uma virada na página tal, outra 20 ou 30 páginas depois, para manter o público interessado. Isso já virou motivo de piada, um verdadeiro bê-á-bá da técnica (não da arte) de contar histórias, segundo Hollywood. Hanson subverte esses esquemas. Estrutura suas histórias baseado na observação - de personagens e ambientes, da ligação entre ambos.

A família fornece o eixo de Em Seu Lugar, mas os verdadeiros temas do filme são outros. Cameron é disléxica, não consegue nem ler. Ela não aprende só o valor, mas o significado da leitura, por meio da poesia. Toni descobre que a verdadeira compensação não está no consumismo, mas no desprendimento. Larga da firma para ganhar dinheiro passeando com cachorros. Poderia ser uma fantasia boba, mais uma, de Hollywood.

É um belo filme sobre o mal que as pessoas fazem aos outros e a si mesmas, e sobre a necessidade de compaixão e perdão. Existem diretores que vivem querendo mudar o mundo a partir de pequenas coisas, reconhecendo que a ação política nasce no indivíduo. É aquela história da grande caminhada que começa com um pequeno passo. Poucos chegam lá. Curtis Hanson chegou. Não seria nada mau se o seu entendimento passasse pelo Oscar.

Em Seu Lugar (In Her Shoes, EUA/2005, 130 min.). Drama. Direção de Curtis Hanson. Cotação: Ótimo

O Romance Sem Ficção De Capote (por Daniel Mendelsohn para a Entrelivros)


Capote, o filme, poderia adotar um dos dois formatos mais freqüentes do cinema americano para contar a vida de um personagem como o escritor Truman Capote (1924-1984). No primeiro caso, seria uma história edificante com final feliz. Uma criança sonhadora chamada Truman Streckfus Persons sobrevive a uma infância excêntrica e traumática, entre a mãe alcoólatra que vive na Park Avenue, uma das principais avenidas de Nova York, e a tia querida que mora numa cidadezinha do Alabama. Ao elaborar o estranho material dos anos iniciais em seu primeiro romance, Other voices, other rooms, torna-se, aos 21 anos, sensação literária em Manhattan.

O filme teria outro gênero bem conhecido e igualmente satisfatório para seguir: o da celebridade em declínio. Então veríamos o escritor Truman Capote, famoso, rico, arrivista querido das mulheres do jet set, às quais chamava de seus "cisnes", autor de elogiadas obras de ficção como Bonequinha de luxo [que acaba de ser relançado pela Companhia das Letras] e do romance de não-ficção A sangue frio [relançado pela mesma editora dois anos atrás], esse último um dos expoentes do new journalism, arruinar- se nas duas últimas décadas de vida.

Na derrocada, perde os amigos da alta sociedade por trair suas confidências, oscila de um projeto a outro sem concluir nenhum e se torna, quando morreu em 1984, aos 59 anos, uma pálida paródia de sua personalidade anterior, caótica e incoerente. "A única pessoa que pode destruir um escritor intenso e talentoso é ela mesma", disse Capote certa vez, observação que se revelou, pelo menos no seu caso, verdadeira.

Mas os criadores do belo e austero Capote [estréia no Brasil prevista para fevereiro] fizeram diferente. O diretor Bennett Miller e o roteirista Dan Futterman recusaram essas alternativas óbvias e escolheram uma linha menos dramática e menos apropriada para o cinema: a história de como Capote escreveu e publicou justamente A sangue frio, o livro que fez sua fama e que o autor considerava o seu "romance sem ficção". Trata-se de uma escolha que à primeira vista parece pouco razoável. O período de seis anos entre os assassinatos que vitimaram a família Clutter, de Holcomb, no Kansas, e as execuções dos dois homens responsáveis pelo crime, foi para Capote - cujo livro começa com o crime e termina com a pena - de monotonia e espera angustiante.

A maior parte do que poderíamos qualificar de "ação" se deu nos primeiros cinco meses desses seis anos. Os Clutter foram assassinados em novembro de 1959. Um mês depois, Capote partiu para Kansas, pensando inicialmente escrever um artigo para a revista The New Yorker - na época, uma das mais importantes publicações de jornalismo e ficção - sobre o impacto do crime na cidade e seus habitantes. Foi acompanhado por uma amiga de infância, a escritora Harper Lee, que logo escreveria e publicaria seu próprio e famoso livro, To kill a mockinbird. Os assassinos foram detidos em dezembro e o processo terminou em abril do ano seguinte, com os réus sendo condenados à morte. As execuções estavam originalmente previstas para maio.

Esse breve período quase não é dramatizado em Capote. O filme enfatiza, em vez disso, os cinco anos seguintes, durante os quais os assassinos tiveram advogados mais capacitados, entraram com recursos e conseguiram adiar a execução. Depois Capote se tornou mais próximo dos assassinos, especialmente de Perry Smith. Adolescente mirrado e com sérios transtornos psicológicos, Smith fora, como Capote, o filho sensível e com inclinações artísticas de mãe alcoólatra, que cedo procurou se aperfeiçoar (Aos cinco e seis anos, Capote andava com um pequeno dicionário, caneta e papel; Smith também fora autodidata e tinha um vocabulário extraordinário).

A identificação implícita entre o repórter e o assassino ajuda a explicar por que Capote se sentiu tão atraído pela história. Ou melhor, a razão pela qual seu genuíno interesse só começou após a prisão dos assassinos, quando percebeu que o artigo que estava escrevendo se tornaria um livro. Isso explica também por que A sangue frio, austero relato de assassinatos no Kansas rural, tem mais em comum com as fantasias iniciais de Capote do que poderíamos imaginar.

Desde Other voices, other rooms até The grass harp e Bonequinha de luxo, a ficção de Capote sempre girou em torno de jovens heróis tentando ser fiéis às suas fantasias em um mundo adulto hostil - papel em que Capote, com sua aparência de criança, se via e que atribuiu a Perry Smith. Em certo momento, Capote compreendeu que não poderia concluir o livro em que o artigo se transformara antes que Smith e Hickock, o outro assassino, fossem executados. E então se viu atormentado com o dilema moral suscitado pela tensão entre suas ambições literárias e a simpatia pelos acusados. O dilema é bem retratado na biografia de Capote escrita por Gerald Clarke [Capote, uma biogafia, editado pela Globo, 1993] e que serviu de base para o filme. O livro faz um relato ponderado e objetivo da agonia emocional vivida por Capote entre 1960 e 1965.

Capote queria ver seu livro publicado, mas isso certamente significaria a dolorosa morte de dois homens que o consideravam como um amigo e benfeitor, dois homens aos quais ele ajudara, consolara e, no caso de Perry, ensinara. O futuro de Capote aguardava a execução dos dois. Os comentários que fez a amigos e que manifestavam seus verdadeiros sentimentos surgem como um sombrio contraponto aos consolos que fazia a Perry e Dick. "Como você talvez saiba", disse a Mary Louise [Aswell, amiga de Capote e editora de Harper's Bazaar], a Suprema Corte negou os recursos (isso pela terceira maldita vez), de forma que mais cedo ou mais tarde algo acontecerá. Fiquei tantas vezes frustrado que nem me atrevo a esperar. Bem, cruze os dedos". É um absurdo moral esse pedido final, uma conjunção típica de infantilidade ("cruze os dedos") e horror (afinal, ele solicita que a amiga deseje a morte dos dois homens).

Não devemos esquecer disso ao considerar o devastador efeito que a redação de A sangue frio provocou na vida e na carreira do escritor. Criticando Capote, o crítico David Denby lamenta que "a sugestão de que o escritor nunca se recuperou da morte de Perry Smith ou do êxito do livro seja duplamente sentimental. Capote foi arruinado sim pelo álcool". Mas as evidências documentais mostram que Futterman e Miller (que encerram o filme esclarecendo o público que Capote jamais concluiu outro livro após A sangue frio) estão sendo fiéis aos fatos. "Ninguém", disse Capote ao seu biógrafo, "poderá saber o que A sangue frio exigiu de mim. Fui consumido até a medula. O livro quase me matou. Creio que, de certa forma, de fato me matou. Antes de começá-lo eu era uma pessoa relativamente estável. Depois, algo me aconteceu. Não consigo esquecê-lo, especialmente o enforcamento final. Terrível!".

"A sangue frio exigiu de mim. Fui consumido até a medula. O livro quase me matou", disse Capote ao biógrafo

Não precisamos nos basear apenas nas palavras de Capote. Após a publicação de A sangue frio, ele ficou rico e famoso e atingiu o ápice do sucesso. Em seguida, porém, tudo começou a ruir: os relacionamentos se deterioraram, ele nunca mais concluiu um livro e seu projeto de escrever um romance "proustiano" sobre a vida dos ricos revelou as limitações de seu talento. Assim, não parece sentimental atribuir a causa de sua decadência às experiências vividas durante a escrita de A sangue frio. "Algo me aconteceu", disse, e esse algo não se refere apenas às execuções, mas à terrível espera de cinco anos e tudo o que esta significou: o êxito do livro que ele sempre soube que seria seu grande feito dependia da morte de dois homens, um dos quais estranhamente parecido com ele.

O alcoolismo foi apenas a causa imediata desse declínio e, a crer nas fontes, também pode ser atribuído ao livro. Phyllis Cerf, esposa do editor e amiga de Capote, comenta que quando conheceu o escritor eles "tomavam um pouco de vinho no almoço e depois um Martini. Mas durante a redação de A sangue frio ele passou a beber cada vez mais, algo que não fazia antes". Os criadores de Capote acertaram ao considerar A sangue frio uma tragédia moral faustiana, um drama em que o protagonista paga um preço monstruoso pela realização de seus sonhos. Tudo no filme, que trata rapidamente dos assassinatos, é convincente: a chegada de Capote na cena do crime, a investigação, o processo, a ênfase na mudança da relação entre o escritor e o assassino, isto é, no apoio inicial dado por Capote ao "amigo" (como Smith gostava de dizer) e na brutal recusa final a ajudar ou se corresponder com o condenado.

O sentimento sombrio e contido do filme ecoa o livro de Capote e sua tragédia moral. As imagens, a fotografia (tão austera que da primeira vez que vi acreditei que eram em branco e preto), o desempenho dos atores e o roteiro são notáveis pelo caráter contido. O roteirista e o diretor parecem ter mergulhado não só na biografia de Capote escrita por Clarke, mas também em A sangue frio: o filme tem o mesmo ritmo sóbrio que caracteriza a poesia do livro. A abertura com os tiros nos campos do Kansas, a série de árvores, a calma na casa da fazenda constituem um perfeito análogo visual das sentenças iniciais do livro de Capote.

Muito será comentado sobre o magnífico desempenho do ator Philip Seymour Hoffman como Truman Capote. Hoffman não tenta imitar Capote. Os conhecidos maneirismos e tiques vocais são devidamente reproduzidos para autenticar o retrato de uma figura pública, mas o que faz a excelência da atuação é o caráter coerente recriado no conciso drama: egoísta, divertido, sentimental e, no final, cruel. Parte da qualidade desse desempenho e do filme em geral se deve ao roteiro de Dan Futterman, bem escrito e fruto de muita pesquisa. Talvez por ser também ator, Futterman sabe o momento de deixar o rosto do ator expressar e sabe quando as reações são tão eloqüentes quanto às ações ou palavras que as provocam.

A sutileza do desempenho do ator que vive o protagonista permite que captemos as reações interiores do escritor. Percebemos o momento em que surge a estranha simpatia de Capote por Smith e o conflito entre o esteta afeminado e o implacável e ambicioso autor. Há muitos filmes sobre escritores, que em geral recorrem a um lugar comum visual para transmitir o que as pessoas costumam chamar de processo criativo: folhas de papel arrancadas da máquina de escrever, amassadas e arremessadas no lixo. Pelo que sei, Capote é o único filme que consegue sugerir algo do processo real de criação literária.

À medida que a narrativa se desenvolve calma e muitas vezes silenciosamente, permitindo que percebamos quem é realmente Capote, o roteirista e o diretor sugerem, com intensidade crescente, que o escritor que deixa o condenado morrer para poder concluir seu livro é, de alguma forma, tão monstruoso quanto os próprios assassinos. "Eu posso matá-lo se você se aproximar demais", diz, brincando, Perry Smith no dia em que Capote lhe oferece uma aspirina através das grades da prisão. "Ele poderia matá-lo com a mesma facilidade com que apertou sua mão", comenta a irmã de Smith a Capote após este ter abandonado o condenado na prisão, frustrado e furioso com a recusa de Smith de narrar os detalhes dos assassinatos. ("14 de novembro de 1959, é sobre isso que quero ouvi-lo", afirma friamente Capote a Smith. "Esse é meu trabalho, Perry. Estou trabalhando. Quando você quiser falar o que preciso ouvir me avise").

No final, a crueldade de Capote ofusca a dos assassinos. O êxito do filme está em transmitir o que há de perturbador na similaridade entre Capote e Smith. Há, é claro, inexatidões, elementos que traem os preconceitos e desejos dos autores de dar uma forma à história que desconsidera a verdade dos fatos, distorção também presente em A sangue frio. O editor da New Yorker, William Shawn, torna-se um vilão no roteiro de Futterman, instando Capote a concluir o manuscrito a todo custo: uma transposição desnecessária de um impulso que era do próprio Capote. E Perry Smith não é o mártir da pena capital, como o roteiro de Futterman, em um raro momento de sentimentalidade, sugere.

Mas, em todos os outros aspectos, o sóbrio e angustiante filme de Miller e Futterman alcança o resultado obtido pelo livro de Capote: transformar algo real, algo que sabemos que aconteceu, em uma bela obra que transcende os terríveis detalhes do crime retratado.

2046: O Amor É Uma Droga Pesada (por Arnaldo Jabor)


O verdadeiro amor é impossível, logo só o amor impossível é o verdadeiro amor. Saí do cinema onde fui ver “2046”, do chinês Wong Kar Wai, pensando nisso. Saí do cinema como de um sonho barroco, manchado, molhado por uma grande massa de cores e sons, de rostos, gestos, mãos, gemidos, dores e gozos. Saí como um drogado, viajando ainda num LSD, uma mescalina da pesada, saí de um milagre alucinado. Vi uma coisa rara: um filme que é o que ele conta. Explico: 2046 seria, no filme, o ano futuro onde tudo seria imutável, lembrado. E agora, quando escrevo, vejo que o tal lugar em 2046 é a própria obra. Entramos neste filme como numa utopia, um lugar úmido, denso, esfumado, chuvoso, cambiante, onde estaríamos no lugar, na terra da paixão. Kar Wai é um grande artista que faz uma súmula de influências do melhor cinema ocidental e realiza um filme híbrido como Hong Kong, oriental para o ocidente, diferente do que esperamos de um filme chinês. E por ele, como pelo primeiro Zhang Ymou, vemos que a cultura erótica chinesa atravessou cinco mil anos incólume, mesmo depois das revoluções maoístas e da China recente dos escravos globalizados. Muito mais sofisticado que europeus e americanos.

É um filme fragmentário sobre o fragmentário das emoções de hoje. Ali estão pedaços de “Blade Runner”, ecos dos Krells do “Planeta proibido” (lembram, cinéfilos?), ali está Jupiter de “2001”, ali estão emblemas e ícones dos filmes noir da Warner, ali está Godard na descontinuidade narrativa, ali estão confusos cacos de Ocidente e Oriente, uma Hong Kong da alma, músicas tropicais, Nat King Cole e ópera, “Siboney” e a “Norma” de Bellini. Que banho... que cineasta admirável!

Em “2046”, tema e matéria se misturam numa massa indissolúvel.

Tudo neste filme é uma exposição da “parcialidade” do erotismo contemporâneo. (Exemplo brasileiro: a bunda substituindo a mulher inteira) A primeira vista parece uma louvação da perversão, do fetichismo, do erotismo das “partes”, do “amor em pedaçõs”. No entanto, Kar Wai está além do fetichismo, além da perversão. Ele retrata (sem teses, claro) a imagerie do erotismo contemporâneo que “esquarteja” o corpo humano. Vejam as artes gráficas, fotos de revistas de arte, como “Photo” (ou em Tarantino), onde tudo é (reparem) decepado, dividido, pés, sapatos, escarpins negros, unhas pintadas, bocas vermelhas, paus, seios, corpos imitando coisas, tudo solto como num abstrato painel. Tudo evoca a impossibilidade saudosa de um “objeto total”, da pessoa inteira..

Uma das marcas do século XXI é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no sexo, no amor ou na política.

Aí, chega o Kar Wai e, poeticamente, intui esse novo mundo afetivo e sexual.

Kar Wai não sofre por um tempo sem amor, como nos filmes que “acabam mal”, sem happy end . “2046” não lamenta a impossibilidade do amor. Não, ele a celebra. Para Kar Wai (e para muitos de nós), só o parcial é gozoso. Só o parcial nos excita, como a saudade de uma plenitude que não chega nunca. Kar Wai assume essa parcialidade, a incompletude como única possibilidade humana. E acha isso bom. E, num filme romântico, nostálgico e dolente, goza com isso. Nada mais delicioso que o amor impossível. E, como canta o samba, “quem quiser conhecer a plenitude, vai ter de sofrer, vai ter de chorar...”. Ou, “O amor é uma droga pesada”, título de livro de Maria Rita Khel.

Kar Wai nos apresenta a droga pesada do século XXI: a paixão.

Ele é o quê? Um romântico-punk, um pierrô pos-utópico? É por aí... um chinês neurótico dando aula para ocidentais.

O amor em Kar Wai, para ser eterno, tem de ficar eternamente irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a prise não pode passar. Aí, a dor vem como prazer; a saudade, como misticismo; a parte, como o todo; o instante, como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo: falo de um espirito do tempo.

Hoje em dia, não há mais uma explícita, uma clara noção do que seria felicidade, como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No casamento? Em 2046, o ano mítico do filme?

Kar Wai não lamenta o fim da felicidade, mas o saúda. Como diz a musica do Vinicius, “é melhor viver do que ser feliz...”, coisa que muito careta não entende.

Este filme mostra que hoje, sem sabermos com clareza, achamos que é bom ansiar por um gozo desconhecido, é bom sofrer numa metafisica passional, é bom a saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade. Assim, o amor vira uma maravilhosa aventura de utopia, uma experiência religiosa, como a fé, que resiste a todos os massacres e terremotos e guerras. Em vez da felicidade, o gozo, o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Como no filme, não há mais felicidade, só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis desertos, luzes mortiças, a chuva, o nada.

Como esse filme aponta, o amor hoje é um cultivo da “intensidade” contra a “eternidade”. Toda a cultura do cinema tende para a idéia de redenção, esperança, mas “2046” não lamenta o fim do happy end . Não. É bom que acabe esta mentira do idealismo romântico americano, para animar o otimismo familiar e produtivo, pois na verdade tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não há aonde chegar.

Tudo bem buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo amor, com um “agapê”, uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesão, tudo bem... Mas a chama da droga pesada amor só vem com o impalpável. E isso é bom. Temos que acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a plenitude, seremos infelizes. Só o amor impossível nos põe em contato com um arco-íris de sentimentos desconhecidos. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.

E tem mais... este artigo não é pessimista. Temos de ser felizes sem esperanças.

sábado, janeiro 21, 2006

Robert Redford Comemora Os 25 Anos Do Sundance Film Festival

PARK CITY, Utah - O Festival de Cinema de Sundance começou com o seu fundador, Robert Redford, relembrando 25 anos de cinema independente e uma época em que ficava nas esquinas implorando às pessoas que viessem ver os filmes.

O festival, que é patrocinado pelo Instituto Sundance de Redford, cresceu a ponto de se tornar o principal evento de cineastas independentes nos Estados Unidos. Hoje atrai milhares de fãs de cinema para Park City, uma cidade montanhosa a leste de Salt Lake City, e obter ingressos não é coisa fácil.

Muitos dos filmes aqui representam alguns dos maiores nomes de Hollywood. O drama que abriu a noite de quinta-feira, "Friends with money", traz Jennifer Aniston, Catherine Keener, Joan Cusack e Frances McDormand. Todo o elenco estava presente na première do filme.
Em suas declarações durante a cerimônia de abertura do evento, Redford lembrou que o instituto está celebrando seu 25º aniversário, e falou sobre seus programas que estimulam roteiristas e diretores. O instituto ajuda-os a transformar idéias cruas em roteiros e filmes.

- Muita gente ignora que o coração do Sundance é o instituto - disse ele. O Sundance trouxe público a produções como ''Sexo, mentiras e videotapes'', de 1989, que lançou o diretor Steven Soderbergh, e ''Hora de voltar'', de 2004, que mostrou ao mundo o talento do ator Zach Braff na direção e no roteiro.

- Filme independente é, quando você pára para pensar, algo bem americano - disse, acrescentando que o legado do cinema independente (filmes feitos fora do circuito de Hollywood) dará uma voz a noções de liberdade e ao direito de discordar.

Redford, que é conhecido por seu ativismo político tanto quanto por sua atuação, disse que com cinco anos de vida, os cineastas do Instituto Sundance precisaram de um lugar para mostrar seus filmes porque Hollywood simplesmente não os escutava.
Assim, o festival nasceu da necessidade, e no primeiro ano apenas 30 filmes foram exibidos em dois cinemas. Entre 300 e 400 pessoas compareceram, disse Redford.

- Nos anos iniciais, não havia praticamente público - disse.

Redford, cuja filmografia inclui "Butch Cassidy" e "Nosso amor de ontem", admitiu que ficava nas ruas para atrair as pessoas para os cinemas.

Esse não é mais o caso, claro, e na première de "Friends with money" não havia uma só cadeira no cinema vazia. Fotógrafos tiravam fotos de Redford e Aniston e espectadores torciam o pescoço para tentar ver as estrelas.
"Friends with money" é significativo não tanto por seu elenco, mas porque sua diretora e roteirista Nicole Holofcener ganhou fama em 2001, quando seu "Lovely & amazing" foi mostrado em Sundance.

O filme, no qual as quatro protagonistas fazem os papéis de velhas amigas que estão em vários estágios de felicidade, raiva, depressão e insegurança, resume muitos dos filmes que estão sendo exibidos este ano no Sundance, disse o diretor do festival, Geoffrey Gilmore.

Nem todos os 120 filmes que serão exibidos aqui durante os dez dias de festival vão agradar o público. Mas Redford disse que é assim que deve ser.
Os filmes são selecionados para o festival para que vozes novas e originais possam ser escutadas, disse. O Sundance é um fórum de idéias e histórias, não importa se o público gosta delas ou não.

- Nós mostramos - disse Redford. - E vocês decidem.

‘King Kong’ Não Gosta De Cinema (por Ricardo Calil para NoMínimo.com)

No material de imprensa de “King Kong” – superprodução de US$ 207 milhões dirigida por Peter Jackson (da trilogia “O Senhor dos Anéis”), que estréia hoje no Brasil –, descobre-se que um dos protagonistas do filme, o cineasta Carl Denham (Jack Black), foi inspirado em Orson Welles.

Denham é o personagem que move toda a trama. É ele quem decide viajar até a inóspita Ilha da Caveira para rodar um filme de ficção, quem convence a atriz Ann Darrow (Naomi Watts) e o dramaturgo Jack Driscoll (Adrien Brody) a se unirem ao grupo, quem decide levar King Kong, o enorme gorila que eles lá encontram, até Nova York. Denham não é apenas um homem enérgico, ele é também um mentiroso e um mau caráter, que coloca em risco a vida de dezenas de pessoas por causa de seus delírios de grandeza. Aparentemente, foi essa faceta da personalidade de Denham que motivou a comparação com Welles. Como explica Jackson, “imaginamos um cineasta tipo Orson Welles (...), um empresário ambicioso e meio trapaceiro no sentido de que Orson obtinha dinheiro para fazer um filme e depois fazia outro totalmente diferente”.

Ora, Welles foi, acima de tudo, um gênio do cinema, não um enganador de estúdios. Ele dirigiu obras-primas como “Cidadão Kane” e “Marca da Maldade” e sempre lutou contra a indústria para manter sua visão pessoal sobre seus filmes (difícil imaginar Jackson fazendo o mesmo). Que Welles inspire a composição de um personagem trambiqueiro me parece um dos aspectos mais significativos de “King Kong” – mais do que a arquetípica história de amor entre a bela Ann e a fera Kong, mais do que seus incríveis efeitos especiais, mais do que os milionários números de produção.

A referência a Welles pode parecer um detalhe pequeno dentro da enorme engrenagem de “King Kong”, milionário remake do clássico de 1933, dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Mas o filme como um todo tem uma visão cínica e amarga do cinema e da indústria do entretenimento. Em um dado momento, Denham diz a Ann: “Pode confiar em mim. Eu sou um produtor de cinema”. E o espectador ri, sabendo que só pode ser uma piada.

Naquela que é a cena mais marcante do filme, Ann faz algumas estrepolias que aprendeu no teatro de vaudeville (onde, aliás, estão as raízes do cinema) para estabelecer algum tipo de comunicação com King Kong, e este delicia-se com as gaiatices. O filme trata o espectador como se ele fosse também um gorila. Depois de um começo animador, em que o cineasta apresenta os personagens e situa a ação na Nova York da Grande Depressão dos anos 30, o filme recorre a uma série de truques baixos para prender a atenção do público a partir do momento em que o grupo de Denham chega à Ilha da Caveira: luta de Kong com dinossauros, ataques de insetos gigantes e outras demonstrações desnecessárias do avanço da computação gráfica. Nesse miolo, o filme parece menos um remake de “King Kong” do que um pot-pourri de grandes sucessos do cinema, como “Parque dos Dinossauros”, “Indiana Jones” e “A Múmia”.
No final do filme, quando Kong vira atração circense para uma platéia deslumbrada de Nova York, percebe-se que o público, na verdade, é ainda menos sofisticado que o gorila. Apesar de brutal, o animal é capaz de demonstrar sentimentos nobres por Ann, de se sacrificar por amor. Já o espectador está atrás apenas de emoções baratas, de clichês sobre o mundo selvagem. O único humano de princípios do filme é Ann, justamente aquele que troca a lógica do “show business” pela da compaixão.

“King Kong” deveria representar o apogeu da indústria de entretenimento e uma celebração ao cinema – já que se trata de uma recriação de um dos filmes mais famosos de todos os tempos pelo diretor mais celebrado da atualidade. Mas resultou, de maneira insólita e um tanto esquizofrênica, em um ataque direto ao meio que o concebeu. Provavelmente será um fenômeno de público sem ter apreço pelo público.

Entrará para a história do cinema sem gosto pelo cinema.

Mel Brooks, O Mestre Absoluto Da Incorreção Política, Está de Volta Com "Os Produtores" (por Ricardo Calil para NoMínimo.com)

“Os Produtores” teve uma trajetória incomum até chegar à versão cinematográfica que estréia hoje no Brasil. Nasceu em 1968 como um filme de Mel Brooks (chamado por aqui de “Primavera para Hitler”). Em 2001, foi transformado pelo cineasta em musical da Broadway. Agora, o musical foi adaptado de volta para o cinema.

Fato mais raro ainda, as três encarnações de “Os Produtores” se tornaram produtos bem-sucedidos. O filme original custou uma ninharia e fez uma fortuna. O musical virou um dos maiores sucessos da Broadway em muitos anos e um recordista de prêmios Tony. Ainda não se sabe se o novo filme repetirá o êxito comercial das versões anteriores, mas já se pode dizer que ele se saiu bem no plano “artístico” (para um clássico politicamente incorreto, essa palavra só pode vir entre aspas).

A maior dúvida em relação à nova versão de “Os Produtores” era saber se o peso da grande produção musical iria esmagar a leviandade do material original de Brooks. Mesmo que em alguns momentos o resultado fique muito próximo do musical mal filmado, não deixa de ser um alívio perceber que a vulgaridade e a gratuidade do humor do cineasta permaneceram intactas. Mudou o entorno, mas não o espírito da obra. É como se, dessa vez, Brooks contasse suas piadas sujas em um nobre salão literário.
Diretor de “A História do Mundo” e “O Jovem Frankenstein”, Brooks é um virtuose da falta de sutileza, o pai espiritual dos bons irmãos Farrely (de “Quem Vai Ficar com Mary?”) e de outros cineastas menos talentosos. Ele cria seu humor a partir dos preconceitos mais baixos, dos estereótipos mais reles, nunca com a intenção de reproduzi-los ou denunciá-los. Quer apenas fazer rir, a todo custo. De tão agressivas, suas piadas não agridem, elas são quase conciliatórias em seu absurdo.
“Os Produtores” é o tour de force de Brooks. Em uma única obra, ele ridiculariza gays, judeus, nazistas, feministas e todo o show business americano. Nas três versões, o enredo é o mesmo: Max Byalystock (Nathan Lane), um produtor teatral picareta, se une a Leopold Bloom (Matthew Broderick), um contador neurótico, para produzir o pior espetáculo teatral da história, depois que os dois descobrem que um grande fracasso poderá deixá-los ricos graças a uma manobra contábil.
A dupla faz tudo para que o show dê errado. Eles decidem produzir “Primavera para Hitler”, uma ode musical ao Führer escrita pelo neonazista Franz Liebkind (Will Ferrell), que acaba assumindo o papel do protagonista nos ensaios. Para arrecadar dinheiro no varejo, Max transa com todas as velhinhas judias de Nova York. Enquanto isso, Leo envolve-se com a beldade sueca Ulla (Uma Thurman), que se reveza entre os papéis de secretária da dupla e de Eva Braun na peça. Para dirigir o show, eles convocam a rainha do kitsch Roger De Bris (Gary Beach).
O filme manteve a dupla central do show da Broadway, Nathan Lane e Matthew Broderick – inferiores aos do filme original, o grande Zero Mostel e Gene Wilder, mas ainda assim versáteis tanto nas cenas cômicas quanto nas musicais. E acrescentou dois coadjuvantes de peso: Thurman, que está deliciosa no papel de loira burra (ela não sabe dançar, mas quem se importa?), e Ferrell, um dos comediantes mais talentosos da nova geração, que se esbalda no papel de neonazista. A direção também ficou por conta de Susan Stroman, a mesma da montagem na Broadway – o que foi provavelmente o grande erro da produção. Em seu primeiro filme, ela se mostra incapaz de superar a origem teatral da obra e de encontrar tom, ritmo e mise en scène cinematográficos para o material. Se não fosse pela direção desastrada, “Os Produtores” seria um daqueles velhos exemplares da grande carpintaria hollywoodiana, em que as muitas partes da produção se encaixam para formar um conjunto perfeito.
Ainda assim, o trabalho de Mel Brooks sustenta o filme e garante uma diversão acima da média. Além do grande dialoguista de sempre, ele se revela um bom compositor, criando um musical que ironiza a extravagância do gênero, que escancara seu ridículo. O cinema andava precisando de um pouco de incorreção política. E, nesse campo, Brooks ainda é um mestre.

Sam Mendes Faz Um Filme Ao Gosto De Bush (por Ricardo Calil para NoMínimo.com)

“Soldado Anônimo”, filme de Sam Mendes que estréia hoje no Brasil, provocou polêmica nos Estados Unidos por causa de seu suposto tom apolítico, por se recusar a fazer paralelos entre a primeira Guerra do Golfo, que a produção retrata, e a atual Guerra do Iraque, que ainda domina o noticiário norte-americano.

Na mais dura crítica ao filme, A.O. Scott, do “New York Times”, escreveu: “É um filme que se aproxima de algumas das mais urgentes e dolorosas questões da atualidade, limpa a garganta ruidosamente e, com ocasionais floreios de uma impressionante retórica, não diz nada”. O crítico Rick Groen, do “Toronto Globe and Mail”, chegou a conclusão parecida: “O resultado é um filme de guerra que sacrifica qualquer voz própria e termina não sabendo o que pensar”.

Peço permissão para discordar dos ilustres colegas. “Soldado Anônimo” é um filme político; que faz paralelos entre as duas guerras do Golfo, mais por contraste do que por semelhança; que toma partido, mesmo que de maneira dissimulada, a favor da maneira como foi realizada a atual invasão do Iraque.

A produção baseia-se no livro “Jarhead”, do ex-fuzileiro Anthony Swofford, sobre suas experiências na primeira Guerra do Golfo, em 1991. Na época, o ditador iraquiano Saddam Hussein invadiu o Kwait, Bush pai determinou o envio de tropas para a região e, depois de meses de tensão, a guerra em si foi decidida em questão de dias a favor dos americanos, graças aos bombardeios de precisão e não aos tiros dos soldados.

Swofford não fala sobre grandes batalhas, mesmo porque não participou de nenhuma. Nem de feitos heróicos, pois não chegou disparar sua arma. Ele discorre longamente sobre o tédio da espera, o temor de ser traído pela namorada, a rotina de masturbações, de treinamentos árduos e de brincadeiras juvenis com os colegas.

O grande drama descrito pelo autor é o da expectativa por um confronto que não chega, o desejo de usar um fuzil que nunca dispara, a frustração por participar da primeira guerra “limpa” da história.

Soldado Anônimo” adota, de forma integral e não-crítica, o ponto de vista de Swofford (muito bem interpretado por Jake Gylenhall). Não é a visão do Exército americano, mas de um fuzileiro com nostalgia das grandes guerras, dos atos de heroísmo e da catarse da tragédia.

O grande desejo de Swofford, reproduzido pelo filme, é participar de uma verdadeira batalha, atirar contra iraquianos, chorar a morte de um companheiro. Não apenas ver bombas atiradas por aviões, encontrar inimigos já carbonizados, suportar a infantilidade de seus colegas. A guerra, a seu ver, só faz sentido no combate corpo a corpo.

E aí chegamos ao atual conflito no Iraque. Ao contrário da anterior, esta é uma guerra suja, com grande participação dos marines, combates intermináveis em terra, milhares de baixas dos dois lados (mesmo porque desta vez houve a invasão de um país pelos Estados Unidos, o que não ocorreu na primeira Guerra do Golfo). O governo americano em geral, e particularmente o secretário Donald Rumsfeld, já foi muito criticado por escolher essa estratégia de combate, em vez de fazer uso mais seletivo e inteligente de seu poderio bélico.

Talvez seja uma teoria conspiratória dizer que “Soldado Anônimo” é um filme pró-Bush. Mas a produção defende a idéia de que a boa guerra não é aquela vencida com rapidez e facilidade, e sim a que exige doses cavalares de sangue e sacrifício – tese bastante confortável para o atual presidente americano.
Ao ser criticado por sua visão da Guerra do Golfo, o diretor inglês Sam Mendes (de “Beleza Americana”) disse que a liberdade de expressão lhe garante a possibilidade de fazer o filme que bem entender, no momento que quiser – o que ninguém pode discutir. Mas ele há de reconhecer que fazer um elogio do fuzileiro em plena guerra do Iraque tem suas implicações – entre elas, ser identificado como autor de um filme de direita.

Esse fato por si só torna “Soldado Anônimo” um mau filme? Não. Na história do cinema, existem belas obras com idéias abjetas (vide o nazista “Triunfo da Vontade”, da alemã Leni Riefenstahl) e obras abjetas com belas idéias (como o panfletário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore).

Há algumas seqüências fantásticas em “Soldado Anônimo”, como a aparição de um cavalo ensopado de petróleo na noite do deserto ou a salva de tiros dada pelos fuzileiros em uma rave para compensar o fato de que não usaram suas armas em combate. O que impede a produção de ser memorável é angústia da influência de outros filmes.

Da mesma forma que Swofford sente a nostalgia da grande guerra, “Soldado Anônimo” tem saudades do grande filme de guerra. Isso pode ser notado nas citações diretas ou indiretas a “Apocalypse Now” e “Nascido para Matar”, entre outros. São referências inteligentes, mas resignadas. Como não pode fazer melhor que Coppola ou Kubrick, Mendes homenageia, mas a comparação lhe cai mal.

Não apenas aqueles dois clássicos são melhores, como ainda têm idéias mais defensáveis. Neles, o drama do protagonista é matar seu inimigo. Em “Soldado Anônimo”, a tragédia é não matar – o que dá uma justa medida dos propósitos do filme

"2046", Um Filme Impossível Como A Mulher Ideal (por Luiz Carlos Merten para o Estadão)

Há uma tristeza ou impossibilidade de amar do personagem de Mr. Chow, interpretado por Tony Leung em 2046 - Os Segredos do Amor, que estréia nesta sexta-feira. É uma metáfora da tristeza ou impossibilidade de filmar do próprio Wong Kar-wai, que retoma, amplia e desconstrói sua obra-prima anterior, Amor à Flor da Pele. O filme concorreu no Festival de Cannes, em 2004. Ontem Kar-wai foi anunciado como o presidente do júri de Cannes/2006.

Provocou sensação uma frase do diretor, que disse que seu filme ainda não estava pronto e era um ‘work in progress’. Kar-wai, quando o filme estreou na França, declarou à revista Cahiers du Cinéma que se tratava de um caso talvez raro - um filme que poderia não terminar nunca, como se fosse um inesgotável documentário sobre a imaginação. Ele já sugerira isso em Cannes, em maio, numa conversa com um pequeno grupo de jornalistas, antes de saber que seria recompensado pelo júri presidido por Quentin Tarantino.

Kar-wai é autor de dois grandes filmes - o citado Amor à Flor da Pele, com Tony Leung e a deslumbrante Maggie Cheung, e o que havia feito antes, Felizes Juntos, de novo com Leung e Tony Cheung, sobre a ligação terminal entre um par de gays. Hetero ou homo, não importa, o amor, melhor seria dizer a paixão, é sempre uma experiência visceral no cinema de Wong Kar-wai. Seu cinema é visceral.

Os cinéfilos conhecem seu método. Ele escreve roteiros detalhados e só não segue fielmente porque tem o hábito de incorporar tudo aquilo que lhe oferecem os atores. Resultam filmes invariavelmente longos e é aí que começa o método Kar-wai - ele vai para a edição e começa a cortar. Desconstrói o que filmou e chega à ossatura, ao nervo. Todas as maravilhosas elipses que fazem o cinema do diretor chinês, o mais original e criativo de sua geração, nasce, em geral, da montagem.
Kar-wai fala sobre 2046: "No momento em que Hong Kong foi reintegrada à China, em 1997, eu comecei a desenvolver um projeto que deveria se desenrolar 50 anos após o término da reintegração. Seria um filme sobre a promessa, construído sob o signo da esperança. E coincidiu que eu tinha esse outro projeto, ao qual não conseguia dar forma, intitulado Verão em Pequim. Esse ‘sonho de filme’, cruzado com o livro Duidao, de Liu Yichang, resultou em Amor à Flor da Pele. Durante a filmagem, descobri o quarto 2046, do hotel em que Tony e Maggie se encontram, e voltei ao outro projeto, que se tornou o de um filme em dois capítulos. Mas eu não queria fazer uma seqüência - para mim, a história de Tony e Maggie estava completa. Comecei, então, a devanear, imaginando uma história sobre a relação de Tony com várias mulheres, enquanto ele busca, em vão, a ideal."

Para Kar-wai, é mais fácil situar a origem do projeto do que falar sobre a forma como ele se construiu. "Não sei! Existem pelo menos quatro histórias que poderiam dar origem a um filme, cada. Imagino que seria possível projetar essas quatro histórias lado a lado. É uma idéia que pretendo desenvolver no DVD. E, de qualquer maneira, para mim, é um projeto sem fim, como uma investigação sobre a imaginação que pode ter desdobramentos infinitos. Estou convencido de que 2046 será sempre uma coisa imprecisa e inacabada, como um projeto de filme ideal inalcançável, da mesma forma Tony busca essa impossível mulher ideal."

Ele considera que a decisão mais importante foi a de fazer o filme no formato scope. "Sempre trabalhei mais com elementos verticais nas cenas, mas aqui, por esse formato, tive que trabalhar muito com os elementos horizontais. Como as ruas de Hong Kong são muito estreitas, ficou mais difícil introduzir o vazio que está na essência de cada imagem." O repórter lembra Fritz Lang, que dizia que o scope só era bom para filmar caixões de defuntos ou cobras deslizando pelo chão. Ele ri, concorda e diz que não consegue segurar a câmera.

"Quando peço a Zhang Ziyi a Gong Li ou a Maggie Cheung que caminhem em cena, automaticamente minha câmera as segue. Não há nada mais sedutor do que o movimento de uma bela mulher.

E O Oscar Honorário Por Toda Uma Carreira De Serviços Prestados Ao Cinema Vai Para ... Robert Altman


A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas anunciou hoje o Oscar que entregará ao realizador octogenário no próximo dia 5 de março durante a 78.ª edição da cerimônia.

O Prêmio corresponde a "Uma carreira que reinventou continuamente a arte cinematográfica e que inspirou a outros realizadores e á audiência igualmente" informou a Academia em um comunicado.

Apesar de seu reconhecido prestígio, este será o primeiro Oscar que Altman recebe, por toda a criação no campo do cinema onde já dirigiu 86 filmes, produziu 39 e escreveu o roteiro em 37 deles. Alguns de seus filmes mais célebres e que renderam indicações ao Oscar de melhor diretor foram M.A.S.H, Nashville, O Jogador, Short Cuts- Cenas da Vida e Assassinato em Gosford Park.

Altman também recebeu outras indicações como melhor produtor por Nashville e Assassinato em Gosford Park.

"Trata-se de um mestre como realizador e que merece esta honra", afirmou o atual presidente da Academia, Sid Ganis. Em sua opinião, não há ninguém como ele na hora de falar de um inovador do meio. "Redefiniu os gêneros, inventou novos modos de utilizar o meio e revitalizou os antigos", afirmou.

Altman nasceu na cidade de Kansas, no Missouri e começou sua carreira como documentarista antes de sua estréia no cinema com Os Delinqüentes em 1957.

Na televisão, trabalhou para séries como Alfred Hitchcock Apresenta, Bonanza e na adaptação de seu popular filme M.A.S.H para uma série de TV de sucesso estrondoso na época, e que continua engraçada até os dias de hoje.

Além de seus êxitos cinematográficos, Altman sempre foi um defensor da contracultura e da liberdade, um dos artistas opositores ao governo George W. Bush, ele prometeu abandonar os Estados Unidos caso ele fosse reeleito.

Ainda que Altman nunca tenha deixado o país, após a vitória eleitoral de Bush, suas produções estão cada vez mais veiculadas á Europa que aos Estados Unidos, onde é mais difícil encontrar financiamento para seus projetos.

Para Claude Chabrol, O Melhor Que Os Homens Têm A Fazer É Entender A Cabeça Das Mulheres (por Elaine Guerini para o Estadão)



Aos 75 anos, Claude Chabrol não consegue filmar sem “un bon petit cadavre” no set. “É a melhor maneira de chamar a atenção da platéia”, afirma o cineasta francês, assumidamente obcecado pelo gênero policial. Um dos pilares da Nouvelle Vague, ao lado de François Truffaut e Jean-Luc Godard, o autor de obras-primas como A Mulher Infiel (1969) e O Açougueiro (1970) sempre foi fascinado por assassinatos, adultérios, obsessões e perversões da alma humana. Temas que adora desenvolver sob um clima de suspense psicológico, o que levou a inevitáveis comparações com o mestre Alfred Hitchcock. “Se não aparecer um corpo, seja num livro ou num filme, sinto estar perdendo o meu tempo.”

Leitor voraz de romances policiais (“Leio tudo, desde Agatha Christie até Dennis Lehane, autor de Sobre Meninos e Lobos), Chabrol leva mais uma trama literária de assassinato às telas. A Dama de Honra, a partir de hoje em cartaz, é baseado no livro The Bridesmaid, em que a escritora Ruth Rendell retrata a obsessão de uma mulher (Laura Smet), a ponto de convencer o namorado (Benoit Magimel) a matar alguém como prova de amor. Da mesma escritora, a rainha do suspense na Inglaterra, o diretor adaptou A Judgement in Stone, num filme batizado no Brasil de Mulheres Diabólicas (1995). “Ruth e eu nascemos no mesmo ano e temos em comum o gosto por desvendar o que se passa na cabeça das pessoas. Principalmente as de mente perturbada.” A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estado, em Veneza.

Diferentemente dos suspenses de Hollywood, suas histórias de mistério não caem nos estereótipos.

Nos EUA, onde o cinema é mais industrial, os diretores e os atores são obrigados a recorrer às convenções do gênero. Felizmente nós, da França, não precisamos cair nesse ridículo. Sempre busquei um estilo diferente de filmar, para não ser tão facilmente entendido pelos espectadores.

É por isso que o sr. joga com as aparências, tirando muitas vezes as máscaras dos personagens ao longo da história?

Sim. Gosto de estabelecer um jogo que, por um lado, estimula a identificação da platéia com o personagem. Mas, por outro, promove um distanciamento. Uma vez que a relação foi criada, procuro incentivar o espectador a ver o que há por trás, aquilo que a princípio eu não queria mostrar.

Às vezes temos a impressão de que o sr. gosta de zombar do espectador...

Só espero que isso nunca faça o público pedir o dinheiro de volta na bilheteria (risos). Sempre contei a história que tive vontade e não necessariamente a história que queriam que eu contasse.

Nunca se cansa do suspense?

Não. Há um elemento no gênero, que é o crime em si, que me permite abordar qualquer assunto. Também não me canso por tratar o suspense de forma pouco convencional. Na maioria dos thrillers, é a trama que mais importa. Mas me recuso a filmar uma história como mera seqüência de incidentes. Prefiro expressar uma idéia, que julgo original por meio dos personagens. E o suspense ainda é o gênero mais apropriado para lidar com personagens desequilibrados, os meus preferidos.

Incomoda a comparação com Hitchcock?

Ficaria muito mais incomodado se fosse comparado a um cineasta ruim (risos). Mas talvez fosse mais adequado me comparar a Buñuel, de quem espero ter me aproximado mais, principalmente nos últimos filmes. Ele é meu grande mestre.

Ruth Rendell aprovou a adaptação?

Quando lhe enviei o roteiro, ela disse ter ficado satisfeita. Espero que não tenha sido apenas por educação. No caso de Mulheres Diabólicas, adaptei o romance que ela havia escrito há uns 20 anos procurando imaginar como Ruth o teria reescrito, se pudesse atualizá-lo para a época em que rodei o filme. Ela parece ter gostado muito. A Dama de Honra, por ser muito mais recente, só exigiu que eu transportasse a ação da Inglaterra para a França.

Alguma razão particular para ter escolhido personagens mais jovens em seus últimos filmes?

É verdade que, em A Flor do Mal, o casal de jovens já tinha grande importância na trama. Mas aqui eles vão além, tornando-se o tema do filme. Essa necessidade de mergulhar no universo dos jovens é recente. O problema maior dessa faixa etária talvez seja o de estabelecer um equilíbrio entre o intelectual e emocional, a razão e a paixão.

É a mulher quem propõe o ato mais extremado no filme, defendendo o assassinato como prova máxima de amor...

Não poderia ser diferente. As mulheres são muito mais fortes e fascinantes que os homens. Estou convencido de que a mulher é o futuro da humanidade, a força que move o mundo. O melhor que os homens têm a fazer é procurar entender como funciona a sua mente. Se elas quiserem, podem facilmente nos destruir.


A Dama de Honra
(La Demoiselle d’Honneur, 111 min.).
Drama romântico.
Dir. Claude Chabrol
Cotação: Ótimo