sexta-feira, março 31, 2006

Tom Cruise contra “South Park” (por Tania Menai para NoMinimo)


Cartunistas e religiosos andam mesmo em pé de guerra. Depois da charge estampada em um jornal dinamarquês que mostra Maomé com uma bomba no turbante – e provocou rebuliços no mundo muçulmano –, a batalha da vez é entre o ator Tom Cruise, fervoroso seguidor da Cientologia, e pessoal do desenho animado “South Park”, produzido no Canadá. Diz-se por aqui que a estrela hollywoodiana ameaçou até não participar da divulgação de seu mais novo filme, “Missão Impossível 3”, se reprisarem o episódio do desenho que brinca com a religião dele. A cientologia não é a primeira e talvez não seja a última religião que “South Park” satiriza. Dessa turma, escrachadamente venenosa, nem Jesus escapa.

Acontece que, além das sátiras à cientologia, “South Park” alfineta ainda a sexualidade do ator, mostrando uma cena em que ele entra no armário e de lá não sai por nada no mundo. O desenho mostra uma multidão aglomerada na porta da casa de Tom e um policial que fala em um megafone: “Tom, você pode sair do armário. Ninguém ficará zangado com você. Saia daí.”. Nada de Tom sair. Chega, então, Nicole Kidman, bate na porta do armário e perde a paciência: “Tom, você não está enganando ninguém. Saia já.”

O episódio não foi reprisado, mas os diretores mandaram o seguinte recado: “Então, cientologia, você pode ter ganho ESTA batalha, mas a guerra de milhões de anos pela Terra apenas começou...você nos obstruiu por ora, mas a sua aposta medíocre para salvar a humanidade vai falhar!”. E ainda assinaram: “Trey Parker e Matt Stone, servos do escuro deus Xenu”, referência a um líder que governava as galáxias há 75 milhões de anos. Crença da religião, é claro. “South Park” perdeu ainda o cantor de soull Isaac Hayes, também seguidor da cientologia. Ele fazia a voz do personagem Chef e diz que largou o programa “por eles ridicularizarem comunidades religiosas inapropriadamente”. O curioso é que tanto a Paramount, que produz “Missão Impossível 3”, quanto o canal Comedy Central, que veicula “South Park”, pertencem à mesma empresa – a Viacom. Segundo a imprensa americana, nenhuma confirma que a retirada do episódio do ar tenha sido forçada por Tom Cruise.

A Igreja de Cientologia, religião fundada na década de 50 do século passado pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard (1911-86), sempre deu o que falar. Já em 1981, a revista “Time” contou, em reportagem de capa, que um jovem de 24 anos havia se suicidado, jogando-se do décimo andar do hotel Milford Plaza, em Nova York, com os 171 dólares que lhe restavam depois de entrar para a igreja.

Inúmeros relatos de falências provam que fiéis acabam doando o que têm e o que não têm nas sessões que prometem curar problemas por meio de exercícios mentais. Eles crêem em espíritos chamados tethans, nascidos na mente de Hubbard. Aqui, Freud não tem vez. A cientologia é contra os tratamentos psiquiátricos ou psicanalíticos. Os seguidores também rejeitam a quimioterapia e até os remédios que amenizam as dores do parto.

Em 1983, onze líderes religiosos, incluindo a esposa de Hubbard, foram presos por conspiração. O mais curioso é que quando Hubbard faleceu, de derrame, a autópsia indicou doses do calmante Vistaril em seu sangue. Diz-se que no Brasil a religião aportou em 1994 – mas não pegou como nos Estados Unidos ou na Europa. Talvez os brasileiros não possam encarar as cifras exorbitantes que a cientologia suga de seus interessados. Ou talvez seja difícil para qualquer igreja competir com o bispo Edir Macedo.

No ano passado, a atriz Brooke Shields foi atacada por Tom Cruise depois de contar em seu livro “Down came the rain” que usou antidepressivos para se curar de depressão pósparto. A mulher dele tem com que se preocupar. Revistas americanas já começam a especular que o nascimento do bebê da atriz Katie Holmes, noiva de Tom, daqui a algumas semanas, será sem anestesia. Há mais um pequeno detalhe: para que a criança chegue ao mundo em clima de harmonia, a mãe não tem direito sequer a berrar de dor. O religião do pai sugere ainda que mãe e bebê sejam separados logo após o parto. Segundo Hubbard, nada de banho, carinhos ou chamegos no primeiro dia de vida. Basta enrolar a criança num cobertor branco e deixá-la sozinha. Coisa que mamífero nenhum compreenderia.

A cientologia domina a vida de Tom Cruise. Depois que ele contratou a própria irmã mais velha, Lee Anne DeVette, como assessora de imprensa, qualquer jornalista que deseje entrevistá-lo deve participar de um tour de cinco horas ininterruptas pelos estabelecimentos da religião, em Hollywood. Inclui-se na esta repórter de NoMínimo. “A imprensa mundial tem interpretado mal a religião; por isso, nosso dever é esclarecer as dúvidas”, prega Lee Anne, que age independentemente dos estúdios de cinema para os quais Tom trabalha.

O tour é marcado com antecedência pelo telefone – jamais se cita a palavra cientologia. Ao ligar para cada jornalista, uma simpática voz se apresenta como assistente de Lee Anne, marca o horário e providencia o transporte. Feito um dia antes da entrevista com ele, “o tour serve para que os jornalistas já saibam sobre a religião antes de falar com Tom”. A iniciativa tem deixado os executivos dos estúdios muito sem jeito, mas não há nada que eles possam fazer.

No meu caso, deixei Nova York, onde vivo, na véspera do encontro – o vôo entre as duas cidades dura cerca de seis horas. Às 11 da manhã de uma quinta-feira, um simpático motorista russo, contratado pelo escritório de Lee Anne, me encontrou na porta do hotel, em Beverly Hills. Quarenta e cinco minutos depois, ele me deixou no Celebrity Centre, em Hollywood. Com ares de palacete, a mansão foi construída em 1929 para abrigar o hotel Chateau Elysée, que hospedava as estrelas de cinema da época. Uma vez transformada em centro de cientologia, a mansão era usada por Hubbard, autor de dezenas de livros, incluindo o best-seller “Dianética”,sobre sua nova filosofia de saúde mental, origem da religião.

Ao anunciar meu primeiro nome, reparei que a recepcionista não conseguia pronunciá-lo; problema que, claramente, nada tinha a ver com a barreira da língua. Depois da quinta tentativa, pedi a ela apenas que avisasse a Lee Anne que a “repórter do Brasil” estava lá. Simpática, sem maquiagem e vestindo um discreto terno preto, Lee Anne apresentou-me a uma colega francesa, da igreja, à repórter inglesa que acabara de chegar de Londres e seria minha companheira de tour, conduziu-nos a uma saleta, serviu-nos uma deliciosa salada, com o prato sobre o colo, e colocou um DVD de uma hora de duração.

Ouvimos, então, o discurso do principal ministro da religião em uma festa da gala, na qual se vêem executivos da indústria cinematográfica e atores como John Travolta na platéia. Ele explica todos os tópicos da religião, como a importância dada à educação e à filantropia, a guerra declarada à indústria farmacêutica, às drogas (movimento que eles chamam de narconon) e aos princípios de psicologia e psiquiatria. Alguns conceitos, se escutados com superficialidade, fazem algum sentido. Outros, nenhum. “Tudo o que é novo tende a ser atacado”, diz Lee Anne, acrescentando que a cruz usada na logomarca da religião antecede a era cristã.

De lá, Lee Anne, sempre sorridente e cortês, guiou-nos pelas dependências da Igreja, que mais parece um centro cultural. Fomos obrigadas, então, a ler os textos explicativos de cada pôster e a assistir a cada vídeo nas televisões de plasma espalhadas pelas paredes; todos bem feitos e bem editados. Afinal, estamos em Hollywood. Lee Anne plantava-se ao nosso lado, esperando que lêssemos cada frase. Não dava para enrolar. Mede-se ainda o estresse dos visitantes numa máquina que lembra um detector de mentiras. Claro, sobrou para mim.

Segurei duas barras de ferro ligadas a um terminal que mostra um ponteiro. Uma menina, com um discurso robótico, disse para eu pensar em meus amigos. Pensei. O ponteiro foi para a esquerda, indicando que aquele pensamento não me causava estresse. Ela pediu, então, para eu pensar em alguém que me causasse um pouco mais de estresse. Pensei. De fato, o ponteiro foi para o lado oposto. Imediatamente, ela perguntou quem era esta pessoa e se eu estava interessada em tratar daquele problema, naquela hora, na frente da irmã de Tom Cruise. E ainda tentou me vender um livro de 28 dólares. Não conseguiu. Este mesmo teste é aplicado pela igreja em plena estação de metrô da Times Square, em Manhattan, o centro mais nervoso da cidade, onde a probabilidade de se achar alguém zen é nenhuma.

De lá, subimos para uma sala onde são treinados os jovens que vão usar esta tal máquina para medir o estresse dos outros. Eles usam bichos de pelúcia para simular testes. Ursos, leões e Mickeys ligados à tal máquina são uma cena, no mínimo, surreal. Uma vez formados, estes jovens conduzirão sessões segundo os ensinamentos da Dianética. A francesa disse que estas sessões podem custar de 20 a milhares de dólares. Em uma outra sala, Lee Anne nos mostrou uma imensa tabela pendurada na parede com a indicação dos diversos estágios seguidos pelos cientologistas. O primeiro é a desintoxicação, ou eliminação de produtos químicos do corpo. Estranhei a proposta, pois, no almoço, Lee Anne perguntou se eu preferia Diet Coke ou Sprite.

Depois de visitar a loja da igreja e recusar as ofertas de DVDs e livros (cujas capas e ilustrações lembram filmes de ficção científica como “Star Wars” e afins), fui levada por Lee Anne em seu próprio carro até uma organização, ajudada financeiramente por Tom, que lida com a questão da anti-psicologia e anti-psiquiatria. No carro, ela conta que ninguém precisa abandonar sua religião para filiar-se à cientologia. Agradeci a indireta, dizendo-lhe que “ser judia já dá um trabalhão...” Ainda brinquei: “Mais do que isso vai além da minha capacidade”.

Ao chegar à organização, somos recebidas por uma mulher muito falante, que nos mostra vídeos de reportagens sobre crianças americanas que cometeram assassinatos ou suicídios sob efeito de drogas, como Zolof e Prozac. De fato, este assunto tem ganho espaço na mídia americana, incluindo primeira a página do “New York Times”. Sem querer defender ou atacar as tais drogas, fiz duas perguntas. A primeira: “Onde estavam os pais que deixaram crianças sob efeito destas drogas por até sete anos?” A segunda: “Como estas crianças tiveram acesso a armas?” Fiquei sem respostas.

Depois de uma volta por uma exposição que condena Freud e a indústria farmacêutica, entramos novamente no carro de Lee Anne e vamos à sede administrativa da religião, uma bela casa reformada por voluntários. Foi lá que ela se despediu para recomeçar o tour com outros jornalistas. Deixou-nos nas mãos de um jovem de fala mansa, sorriso meigo e texto decorado. Na recepção, reparei um troféu com uma bandeira do Brasil recebida pela igreja de alguma organização brasileira. Que “coincidência”.

Nossa visita já durava cinco horas e ainda tínhamos pela frente mais fotos e textos, uma sala de troféus e outro vídeo de depoimentos. Depois de doze horas de vôo, derrubada pelo fuso horário, a jornalista inglesa pedia o fim da peregrinação. Também reclamei. Não adiantou. O jovem de fala mansa e decorada serviu-nos o jantar, às cinco da tarde e colocou mais um vídeo, em que Tom Cruise defende a limpeza do ar do Ground Zero, região de Manhattan onde caíram as Torres Gêmeas.

No vídeo, Tom Cruise conta também que cresceu achando que tinha dislexia (depois de ter mudado 15 vezes de cidade – conseqüentemente, de escola - nos primeiros quinze anos de vida) até a Igreja de Cientologia lhe ensinar que “não era nada daquilo e que crianças não devem ser taxadas disso ou daquilo”. Como se não bastasse, o rapaz pegou um livro infantil didático, desenvolvido pela igreja, e nos fez ler com ele. Àquela altura, eu já estava ligada no piloto automático.

Na saída, ganhamos uma bolsa para laptop, com uma etiqueta em que consta o nome de Tom Cruise de um lado e o nosso no outro. Dentro da bolsa, textos e DVDs sobre a religião. Ao ver o carro do russo me esperando na porta, mergulhei no banco de trás. “Nossa, vocês demoraram. Faz seis horas que a busquei no hotel!” - espantou-se o russo. “Eu já tinha até largado o expediente quando me telefonaram para apanhá-la de volta”. Nem tive forças para responder. Precisava resgatar as energias e a concentração para a entrevista do dia seguinte.

Horas depois de chegar ao hotel, recebi a visita da jornalista italiana que, junto comigo, iria entrevistar Tom Cruise e Steven Spielberg sobre “Guerra dos Mundos”. Ela estava uma pilha de nervos – acabava de sair do tour. Combinamos de não perguntar nada sobre a religião. E cumprimos. No dia seguinte, almoçamos com dois repórteres da revista alemã “Der Spiegel”, nos estúdios da Dreamworks, onde se deu a entrevista. Eles falaram com Steven e Tom antes de nós. Ao entrarmos na sala de entrevista, cruzamos com os companheiros de almoço que estavam saindo, com a cara emburrada. Estranhei.

Nossa entrevista foi acompanhada por Lee Anne e pela RP do filme. Sim, Tom Cruise é simpático, seu sorriso hipnotiza e ele é tão lindo quanto as imagens dos meus sonhos de adolescência. Contou que esteve na Amazônia e que quer passar um carnaval no Rio de Janeiro. Ainda assim, depois da tentativa de lavagem cerebral, aquele encanto todo não me convenceu totalmente. Li depois em “The New York Times” que os tais alemães tinham batido boca com Tom sobre cientologia, em plena entrevista – razão pela qual saíram bufando da sala. Por mais clichê que possa soar, os experientes jornalistas ainda não tinham aprendido o básico: sexo, futebol e religião não se discutem. Às vezes, a gente simplesmente lamenta.

Sidney Lumet diz: ‘Fiz mais de 40 filmes. Não tenho do que reclamar’ (por Rodrigo Fonseca para O Globo)


São três sílabas apenas: é-ti-ca. Só que aos 4 anos, quando subiu pela primeira vez em um palco, em 1928, estimulado a interpretar pelo pai ator (Baruch Lumet) e pela mãe dançarina (Eugenia Wermus), Sidney Lumet não era capaz de soletrar aquela que se tornaria sua palavra-chave, a base do processo de alfabetização sociopolítica a que ele viria a submeter o cinema. Lumet tampouco imaginava que seu barato seria dirigir, não atuar. E que sua praia não seria o teatro, e sim a tela grande. Hoje, aos 81 anos, ao ver a entusiasmada reação de público e crítica nos EUA diante da comédia judicial “Find me guilty”, o 43 filme com seu nome nos créditos de direção, o veterano cineasta americano desconfia que Hollywood ainda carece de aulas sobre os deslizes da moral. Premiado em 2005 com um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, depois de ter sido indicado cinco vezes à estatueta, o diretor de sucessos como “Doze homens e uma sentença” (1957) e “O homem do prego” (1964) tentou explicar, em entrevista por telefone ao GLOBO, o que o atraiu na história do mafioso Giacomo “Fat Jack” DiNorscio, cujo julgamento, considerado o maior da história do direito ocidental, durou 21 meses.

Desde 1983, quando “O veredicto” lhe valeu uma indicação ao Oscar, um filme seu não era tão elogiado quanto “Find me guilty”. Qual é o dilema ético que cerca o julgamento de “Fat Jack” DiNorscio?

SIDNEY LUMET: Ele expôs o quão equivocadas as autoridades americanas conseguem ser. Foi o julgamento mais longo da História, envolvendo nada menos do que 76 acusações. E, mesmo assim, após 26 meses, tudo foi decidido em 24 horas. DiNorscio dispensou advogados. Ele se fez defender e fez de sua defesa um show. Ele já estava na cadeia, cumprindo uma pena de 30 anos. Nada podia piorar sua vida.

A escolha de Vin Diesel, um astro associado à pancadaria, deixou os críticos desconfiados. O que o levou a bancar o astro de “Triplo X”?

LUMET: Muita gente esnoba os astros de filmes de ação. Ainda que a história do cinema tenha provado o quanto eles podem surpreender. Sean Connery fez filmes de ação e é um ator soberbo. Clint Eastwood, idem. Quando comecei “Find me guilty”, descobri um curta-metragem de 20 minutos que Diesel escreveu, produziu, dirigiu e estrelou, chamado “Multi-facial”, em que ele faz cinco papéis. Quando vi o desempenho dele, tive a certeza de que ali estava meu protagonista.

Seu nome costuma ser associado à “geração Easy Rider”, formada por Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich e outros diretores que, nos anos 70, engajaram o cinema americano em discussões sociais. O senhor se sentia parte do movimento?

LUMET: Naquela época, em que dirigi “Sérpico” e “Um dia de cão”, não sabíamos que estávamos fazendo uma revolução. Fazíamos filmes. Não sabia que estava integrando um movimento. Em cada filme que fiz, nunca busquei nada mais do que contar uma história. Nunca entendi nem aceitei o fato de os diretores acreditarem que precisam ter um discurso. Quem fala por um diretor é seu filme.

Em seu livro, “Fazendo filmes”, que acaba de ser relançado no Brasil pela Rocco, o senhor menciona dissabores e prazeres profissionais. Que frustrações o mercado gera a quem continua filmando aos 81 anos?

LUMET: Eu fiz mais de 40 filmes. Não tenho do que reclamar. Mas não faço vista grossa para os problemas de Hollywood. O que me assusta no cinema hoje é a compra dos estúdios por grandes companhias, como a General Electric. Elas tratam o cinema apenas como um negócio. Um negócio milionário.

E isso o assusta?

LUMET: Sim. Veja quanto custa um filme hoje em dia. Mais do que isso, veja quanto um filme é capaz de render. Como é que um filme pode render US$ 1 bilhão? US$ 1 bilhão!!!!??? Uma renda dessas faz os investidores acreditarem que arrecadar US$ 1 bilhão pode ser um meta. Se a meta é essa agora, o filme seguinte terá de render US$ 2 bilhões e por aí vai. Só que, para que isso aconteça, nossos longas não podem trazer conteúdos que afastem nenhum espectador. Nesse momento, o cinema passa a ficar parecido com a televisão.

É curioso ouvir isso da sua boca. O senhor estreou na direção na TV.

LUMET: Foi fazendo televisão, especialmente TV ao vivo, que eu adquiri conhecimentos técnicos essenciais à direção. Foi na TV que eu passei a dominar o uso de lentes, e nada no cinema é mais importante tecnicamente do que entender que lente deve ser usada em cada tipo de cena. A TV me ensinou ainda a administrar recursos de produção.

Muitos críticos dizem que a TV limitou o seu senso de experimentação. O senhor discorda?

LUMET: O esnobismo que segrega cineastas de formação televisiva é o mesmo que desqualifica atores como Vin Diesel. Spielberg veio da TV. E nunca vi alguém que tivesse uma cabeça mais cinematográfica do que a de Spielberg. O que eu lamento hoje, na televisão americana, é ver que o telejornalismo não busca refletir os fatos. Não há investigação. Hoje tudo virou propaganda a favor do governo. Ninguém questiona Bush. Só comediantes como David Letterman, Jay Leno e principalmente Jon Stewart (o apresentador da última cerimônia do Oscar) , que é brilhante.

Seu primeiro trabalho na telona foi em 1939, como ator em “One third of a nation”, de Dudley Murphy. Depois de 67 anos de cinema, os filmes ainda o surpreendem?

LUMET: Não sei como 2005 foi para o cinema brasileiro, mas lhe garanto que foi um dos anos mais bonitos na história do cinema americano. Lá pelo mês de outubro, foi lançada uma série de filmes, entre eles “Capote”, “O segredo de Brokeback Mountain”, “A lula e a baleia”, “Boa noite, e boa sorte!” e “Munique”, com ambiciosas investigações humanistas. O que havia de comum entre eles: a autonomia em relação aos efeitos especiais. Nenhum desses filmes dependeu do computador. A riqueza deles está em discutir problemas da América contemporânea.

E o 11 de Setembro? Hollywood já está preparada para falar dele. Oliver Stone, que lança em agosto o filme “Torres gêmeas”, sobre o atentado ao World Trade Center, acredita que sim.

LUMET: Não sei. Isso depende de cada diretor. Sempre achei que ninguém deveria filmar nada sobre o Holocausto. Aquela foi uma experiência tão dolorosamente única que jamais conseguiria ser reproduzida. Não acreditava que um cineasta fosse capaz de iluminar o tema. Mas aí veio Spielberg com o soberbo “A lista de Schindler”. Se meu ponto de vista prevalecesse, “A lista de Schindler” jamais teria sido feito. Quanto ao 11 de Setembro, depende do que Stone tem a dizer.

O senhor enquadra Oliver Stone entre os cineastas que têm discursos mais fortes que seus filmes?

LUMET: Stone é um roteirista magnífico e um grande diretor. Quer dizer... Ele é um diretor competente. Espero que ele não se deixe levar pelas emoções. Algumas vezes, ele deixou que sua paixão o desgovernasse, até que perdesse o controle. Oliver Stone é um diretor que explica ao espectador o que o filme dele tem a dizer. Filmes falam por si.

Que filmes brasileiros o senhor viu?

LUMET: Nenhum! Não fique desapontado comigo. Não é indiferença. É culpa do inacreditável sistema de distribuição de filmes na América. Houve um tempo, em Nova York, em que havia uma salinha de cinema que só passava filmes russos, outra só para italianos... Isso acabou. Há alguns dias, em Roma, fui almoçar com Bertolucci. Perguntei a ele: “Bernardo, quando foi a última vez que um filme seu passou por Nova York?” e ele: “Sidney, meu último filme (‘Os sonhadores’) estreou na sua cidade no ano passado, teve uma bela recepção da crítica, e, mesmo assim, só ficou uma semana em cartaz”. Meu Deus! Estamos falando de Bernardo Bertolucci.

Ao contrário de Robert De Niro, que virou uma caricatura de si mesmo, e Dustin Hoffman, hoje relegado a papéis secundários, Al Pacino, seu ator em “Sérpico” e “Um dia de cão”, ainda surpreende platéias. O senhor acredita que ele vai resistir por muito tempo assim?

LUMET: Entre os astros do cinema, há uma questão recorrente: onde estão os grandes papéis? Uma das tragédias que devastaram Marlon Brando foi o fato de que, ao envelhecer, não lhe sobraram grandes papéis. Só no teatro. Mas ele abandonara o teatro há décadas. Desconfio de que não há mais grandes papéis para Al. Ele está mais velho e nunca foi um homem bonito. Mas não há nada que ele faça sem paixão. Sempre espero um roteiro que exija dele tudo o que os filmes que fizemos juntos exigiram dele. Tudo o que um roteiro cobra, Al Pacino dá.

“Um dia de cão”, que acaba de ganhar uma edição em DVD, é considerado sua obra-prima. Há espaço para filmes como ele nessa Hollywood loteada por grandes corporações comerciais?

LUMET: “Um dia de cão” rompeu tabus. Sexuais principalmente. Meu protagonista tinha um relacionamento homossexual com alguém que tentava uma operação de mudança de sexo. Aquilo foi chocante à época. Mas o que chocava não era o fato em si. Chocava porque era a primeira vez em que um filme americano abordava essa questão como algo absolutamente corriqueiro, sem apostar no sensacionalismo. Hoje em dia, os diretores fazem muita propaganda. Veja “Brokeback Mountain”. É um filme extremamente bem-feito. Nada mais. Mesmo assim, criou-se uma celeuma em torno dele por mostrar caubóis gays. Qual é a originalidade disso? Sabe o que eu acho? Acho que as pessoas deveriam fazer menos propaganda e relaxar.

Tenho saudades de um outro cinema (por Arnaldo Jabor para O Globo)


Muita gente chega para mim e diz: “Como é?... Você não vai voltar a fazer cinema?”. “Sei lá”, respondo. E penso: “Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?” Às vezes, me dá vontade de filmar alguma coisa tênue, poética, não mergulhada no labirinto de produção e distribuição. Nos anos 60, buscávamos um cinema essencial, o chamado “específico fílmico”, que estaria talvez nos filmes de Eisenstein, ou em Murnau, ou em Dreyer, sei lá. Os cinéfilos pensavam: “Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?” Isso me faz lembrar uma famosa frase do grande cineasta-fundador Humberto Mauro que, daqui a pouco, eu conto.

Na verdade, tenho saudades do cinema, sim, justamente nesta época em que as imagens nos penetram, inundam nossos olhos e ouvidos. Mas tenho saudades de outro cinema, da fragilidade dos filmes antigos e da idéia do “objeto único” a que eles almejavam. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio — falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo “Cahiers du Cinema”, pelos círculos de fumaça dos Gitanes sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas. Atualmente, a cinefilia soa quase como um vício sexual; talvez tenha sido. Há um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Mas, se eu reclamo desta profusão, dizem: “Ah, qual é a tua, cara? Isso é bom para o cinema, aumenta a difusão no mercado etc e tal.!”. Talvez, talvez, mas tenho saudades da sala escura, do cinema-segredo, do cinema dos pobres tímidos, do cinema como ilusão solitária, realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Como era bom esperar um filme do Fellini, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Faltam-me o gosto-arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tive e tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor e roteirista argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois “gays” jovens que ele chamava de suas “filhas”. Uma delas era Yasmin, “filha” dele com o Ali Khan — pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era “filha” dele (dela) com Orson Welles.

Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, a “Yasmin” achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua “mãe”. Segredou-lhe : “Mamãe... ontem eu vi ‘Stella Dallas’ do King Vidor na TV... chorei tanto...”. Eis que a “mãe” Puig balbuciou-lhe do leito: “É... a Barbara Stanwick está ótima... mas o John Boles nunca me emocionou muito”. Yasmin, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a “irmã”: “Mamãe está melhorando!”.

Nessa época, o cinema ainda tinha a tal “alma” que hoje desapareceu nos supermercados e videoclubes. Por isso, me lembrei do Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: “Humberto, meu querido, você precisa ir no meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!”. E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: “Por que querem que eu filme cachoeiras?”. Toda hora era isso: “Rapaz, eu vi uma cachoeira incrível num lugar assim, assim, pra você filmar!”. Humberto Mauro não entendia o porquê. Um dia, ele deu uma palestra num cineclube do interior quando, na volta, já na estação, atrasado para pegar o trem, um dos garotos agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: “Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a essência, a alma do cinema?”. E o velho Mauro, em meio à fumaça da locomotiva, teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: “Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!”. Esta frase ficou famosa entre os então “amantes da Sétima Arte”. E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua ainda recente invenção: “Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam...”

Talvez seja esta a “essência” do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava sua morte na interpretação de uma melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta — eu que me apaixonei por Brigitte Helm em “Metrópolis” e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.

Por isso, a idéia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século XX foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas que a esgotassem.

Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na política, é fracasso certo.

Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrário, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente, quanto no monolitismo da massificação ocidental, vemos este perigo e desejo.

Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra, e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.

domingo, março 26, 2006

O olhar atento e sensível de George Clooney em "Boa Noite e Noa Sorte" (por Sergio Alpendre para Contracampo)

Com vinte minutos de filme dá pra notar que, por trás de toda a verborragia, existe um projeto bem definido de imagem no novo filme de George Clooney. Em seu preto e branco de aparelho de TV dos anos 50, Clooney trata do episódio da caça às bruxas com uma aparente linguagem seca e jornalística. Aparente porque, para além dos cortes rápidos e dos contraplanos funcionais, Clooney insiste em mostrar com sua câmera, não só o que está em destaque (e deveria, em tese, atrair a atenção do público), mas os mínimos olhares trocados, o espaço claustrofóbico onde se dá essa luta de jornalistas por um ideal. Esse espaço é uma sala minúscula onde se dão as reuniões de pauta de um programa de prestígio, “See it Now” – apresentado por Edward Murrow, mas custoso para a emissora incipiente, CBS. Existe também o bar, reduto dos jornalistas que se apinham entre mesas apertadas com jornais à mão para comentar a repercussão do último programa. Por último, existe um casal que não pode se assumir como tal porque é proibido relacionamento amoroso entre colegas de setor. Há muito mais força no desfocar de personagens importantes como o de Clooney (diretor do programa) do que nos closes de reação, e Clooney (o diretor do filme) parece entender perfeitamente que o fora de quadro pode ser até mais eficiente quando se torna dentro do quadro – mesmo que pareça continuar fora de quadro. São detalhes: do pedaço de gente que anuncia alguma notícia primordial, do aparelho televisivo que transmite os depoimentos dos perseguidos pelo macarthismo, do personagem que lê a matéria mas tem sua cabeça cortada, dos olhares de David Strathairn (um Edward Murrow terno e responsável), de seu bordão final, justamente o que dá nome ao filme, tão nobremente entoado. Detalhes que não fogem ao olhar atento e sensível de Clooney.
Que se note também o risco de se descambar pra uma crítica via Michael Moore, comparando os EUA daquela época aos de hoje. Clooney pode até querer essa conexão, mas ela não se dá pelo viés de denúncia e sim pelo da esperança: Frank Langella, que interpreta magistralmente o chefão da CBS, é o personagem-chave nessa busca pelo ideal jornalístico do outro lado; o contraponto sensato à “porralouquice” idealista dos jornalistas. É ele quem segura o rojão, não censurando, não pressionando, mas alertando para os excessos do programa, que poderiam afetar a emissora e causar demissões. No pronunciamento deflagrador de Murrow, ele diz que pode conviver com amigos comunistas sem ser influenciado por seus ideais políticos. Clooney poupa a todos no meio político da época, menos o senador Joseph McCarthy e o jornalista do Washington Post que provocou o suicídio de um outro âncora, comunista enrustido de um outro programa da CBS.Pode-se dizer que o momento da política americana durante o macarthismo é tão escancaradamente ridículo, como o próprio filme reforça, que qualquer contraponto tornaria-se redundante, pois o prestígio do âncora já fornece todos os dispositivos críticos à política do senador. Mas, claro, há os patrocinadores: sem eles, qualquer tentativa de levar esclarecimento ao público dá em fracasso. O programa é mandado para um horário ingrato, e o diretor do programa tem a difícil missão de fazer cortes em seu pessoal. Mas o filme termina como começou, com Murrow dando uma palestra, em 1958, sobre seu passado na TV, e sobre o futuro do jornalismo – fazendo a ponte, desnecessária, com a situação atual com que tanto sonham os críticos americanos.

David Cronenberg revela-se o grande herdeiro estilistico de Fritz Lang em "Marcas da Violência" (por Fernando Verissimo para Contracampo)

Talvez o que mais impressione no cinema de David Cronenberg seja a habilidade, a facilidade com que o cineasta opera mudanças formais, alternando diferentes tons do registro, sem nunca sacrificar seu estilo. É praticamente impossível assistir a um filme assinado pelo diretor canadense sem reconhecer sua marca, elegante e inefável, impressa em cada plano – e Cronenberg não pode ser considerado, sob qualquer aspecto, um formalista puro e simples. Uma qualidade de artesão em obra fortemente autoral.

Assim, não é de estranhar que em "Marcas da Violência" tudo pareça deslocado à primeira vista: cenário provinciano, personagens caricaturais, atenção particular da direção à observação da rotina e da vida familiar. Pensamos estar em terreno novo para o diretor, e de fato estamos, embora tenhamos a certeza absoluta de que as coisas vão se encaminhar progressivamente para a barbárie e para a monstruosidade.

Ora, o novo filme de Cronenberg é devedor de um fatalismo langiano em sua construção dramática – uma lógica de encadeamento das ações sob a qual não se tem controle, e que, no fim, vai revelar a natureza profunda de cada personagem. A começar pelo prólogo – um primor de realização, com sua evocação atmosférica de pesadelo e sua serena descrição de um ato animalesco e boçal – e pela cena que dá seqüência, em brutal contraste com a anterior, percebemos que não há rota de fuga possível para evitar o choque entre estes dois registros, aparentemente sem pontos de contato.
Acompanhamos sem maior envolvimento o desenrolar de um típico dia na vida de uma típica família de uma típica cidadezinha do interior norte-americano – uma rotina de tortas de maçã, de tímidas vitórias pessoais no campo de baseball, de fantasias sexuais comuns e sem maiores atrativos. Mas por trás de todo esse quadro de "normalidade" há um zumbido, um ruído estranho que Cronenberg sinaliza com singular ironia – algo como um Hawthorne em sua descrição da decadência da sociedade puritana do século XVIII. Na escola, há o valentão frustrado com a derrota para o tímido vira-latas; na lanchonete, o cozinheiro relata o fim de seu casamento com uma neurótica violenta que acreditava ter se casado com um psicopata; na cama, o vira-latas pai é presenteado com a fantasia do valentão; em casa, monstros se escondem no armário e embaixo da cama.

Como em um episódio de The Twilight Zone, um caso singular vai virar esse quadro do avesso e pôr em xeque as bases das instituições que sustentam toda essa normalidade. No centro está a figura do pai, onipresente nas ficções do cinema americano contemporâneo que buscam engajamento em discurso sobre as mazelas daquela sociedade. Em "Marcas da Violência", o que parece estar em jogo é o deslocamento do centro de poder da figura materna, um ponderado depositário de valores pacíficos e civilizatórios (uma advogada, não menos), para um pai de velho testamento, um pesadelo de masculinidade rompante e descontrolada. Aqui, Cronenberg retoma um locus clássico do western, cuja representação máxima, em tom de caricatura, seria o Shane de George Stevens. Seu Tom Stall também é um clichê ambulante – também um "homem de poucas palavras" no dizer do ogro representado por Ed Harris –, mas ao contrário do cavaleiro misterioso de Stevens, Tom age prioritariamente em defesa da manutenção da ordem à qual ele pertence, e não por um senso de justiça superior. E não são apenas os fins que divergem, mas também os meios e a natureza: Tom é uma máquina de matar, um animal selvagem, puro instinto aprisionado no "estábulo" imaginário de seu novo nome. Vale dizer que "stall", além de estábulo, significa também envelhecer – e a maturidade de Tom não é natural, mas uma fantasia criada sobre outra, adolescente, de poder.

O retorno dessa fantasia reprimida nasce de um profundo desencanto expresso no diálogo dos adolescentes – para eles, amadurecer significa se resignar a um estado de impotência, de frieza, de alcoolismo e insatisfação sexual e sentimental. O mundo-clichê que eles habitam, herdeiro de uma iconografia do bem-estar da América dos anos 50, não oferece maiores saídas, uma vez que a cidade grande, o ideal de fuga tradicional – romantizado num American Graffiti, por exemplo –, surge aqui simbolizado pelas sinistras figuras corrompidas e monstruosas que perturbam a paz de sua cidadezinha.

Neste particular, o filme guarda pontos de contato nada desprezíveis com outra alegoria da guerra preventiva, a Guerra dos Mundos de Spielberg. Em questão em ambos os filmes, no de Spielberg em uma seqüência particularmente polêmica, a legitimação de um ato de violência em defesa da família –, em que os filmes refletem em citação direta ou em alusão o Mystic River de Eastwood. Em Cronenberg, porém, é muito clara a opção pela esquiva à discussão moral de Eastwood ou Spielberg. Cronenberg está mais próximo de uma mitologia, do terreno simbólico, que nas mãos dos outros diretores vira terreno pantanoso. Vide a purificação do protagonista, na imagem mais carregada de simbologia religiosa da carreira do diretor, se banhando nas águas plácidas de um lago depois do parricídio simbólico cometido em repúdio à brutal herança que Tom evita receber a todo custo.

No fim, em seqüência antológica à mesa do jantar, o filho adolescente não consegue esconder o fascínio, o orgulho e a inspiração diante do pai; a esposa se vê engolida pela cruel lógica dos fatos, e se resigna num choro calado diante da necessidade da presença daquele que impõe um novo equilíbrio de poder; a criança assustada do início, com a candura e inocência típicas, coloca o prato sobre a mesa, restabelecendo num gesto a ordem familiar e a aceitação plena. Uma vez afastado o mal maior – a crueldade e a barbárie sem sentido –, "Marcas da Violência" se assume como fábula, dando um sentido ao medo e à violência. Os monstros no armário podem ser imaginários ou não – mas, via das dúvidas, melhor manter a luz acesa.

 
 

A Primavera Tardia de "Flores Partidas" (por Luís Miguel Oliveira para PÚBLICO.PT) em cartaz no Cine Arte Posto 4 - Santos

É de há muito que o meio do caminho rima com selvas escuras. Sem ser "a comédia", sem ser sequer "uma comédia", "Flores Partidas" podia ser descrito assim, como um filme sobre um homem (a personagem de Bill Murray) que chegando a meio do caminho se descobre numa selva escura - que é "mental", claro, como são todas (mas reparem como curiosamente o apartamento dele até está sempre na penumbra).

Segue-se a consequente viagem e, no fim, exactamente no último plano, o homem descobre que ficou encravado no inferno - "mental", claro, como são todos. Jarmusch, o melancólico Jarmusch, desta vez cruza a fronteira e faz de "Flores Partidas" o mais desesperado filme que alguma vez assinou. Evidentemente, referências cada um escolhe as que quiser usar. E o filme até pega, de maneira se calhar um pouco ostensiva, numa referência "clássica": o mito de Don Juan. Bill Murray é um homem chamado Don Johnston (num "gag" confundem-no com o Don Johnson ex- "Miami Vice" e o ex de Melanie Griffith), que nos primeiros planos do filme está enfastiadamente sentado em casa, olhando para um velho Don Juan de cinema que passa na TV (aparentemente é o "The Private Life of Don Juan" de Alexander Korda). É fácil perceber o desenho da personagem: aqui está um homem com uma longa lista de seduções e mulheres deixadas para trás, e chegou um momento em que se vê ao espelho. A última mulher (um quase- "cameo" de Julie Delpy) despede-se no princípio do filme, está farta dele e vai-se embora.Em "Down By Law" (um Jarmusch de 1986) Tom Waits começava a mexer-se depois de uma igualmente inicial cena de "breakup", bastante mais violenta e "histriónica" ("as botas não, não me atires as botas pela janela!"). Este Don Johnston, que tão rapidamente se resigna à solidão do seu apartamento de luzes sempre apagadas, precisa de mais qualquer coisa para se mexer. Uma carta: uma ex-namorada, que não se identifica, escreve-lhe a dizer que teve um filho dele e nunca lhe disse nada, e avisa-o de que o filho, agora um adolescente, está na altura de querer conhecer o pai. O vizinho de Johnston (Jeffrew Wright), que tem a mania de se armar em detective particular, instiga-o a procurar as mulheres que podiam ter assinado tal carta (isto também se podia chamar "A Letter from Five Wives") e prepara-lhe a viagem ao passado: Don Johnston irá visitar, uma a uma, cinco antigas namoradas.

Se este é o princípio narrativo do filme, é sobretudo o "set up" para a figura essencial de "Flores Partidas", a ideia da "viagem", tanto num sentido metafórico, interior e introspectivo, como em sentido literal, físico e territorial. A "viagem" é uma figura cara a Jarmusch, mesmo quando não se cumpre, mesmo quando existe apenas em desejo e mesmo quando não passa duma errância em circuito fechado.

Jarmusch reconhece que "Flores Partidas" era, no espírito, o filme que sentia mais próximo de uma das suas primeiras obras, "Stranger than Paradise" (1984), mas de alguma maneira, e sem que isso signifique que "Flores Partidas" recorra à citação (directa, pelo menos), este também é um filme por onde passam ecos ("ecos", será mesmo a melhor expressão) do Jarmusch dos anos 80, de "Down by Law" a "Mystery Train" (1989) - o que, num filme que tem por tema a revisão do passado, não deixa de ser um pormenor interessante.Mas, sendo uma viagem no tempo, a viagem de "Flores Partidas" é igualmente uma viagem no espaço. Johnston vai ao encontro de uma América típica, ou pelo menos habitada por alguns fragmentos de uma mitologia típica, e este encontro com uma América no cruzamento entre as "raízes", a mitologia (ou as imagens que incorporaram a mitologia) e uma espécie de "margem" (a América dos "olvidados"), é outro tema profundamente "jarmuschiano". E julgamos que em grande parte é isso que explica que Johnston, na sua demanda, não se confronte apenas com as ex-namoradas, mas sobretudo se confronte com os "décors" a que elas correspondem - e que são todos diferentes, dos restos de uma mitologia da "small town" a que surge associada a personagem de Sharon Stone (e onde faz um perverso sentido que seja citada a "Lolita") à caricatura brutal da decadência de uma marginalidade "pós-hippie" que acompanha a personagem de Tilda Swinton. E que tem o seu reverso na cena com a namorada que se tornou agente imobiliária e vive num bairro de pré-fabricados assépticos e horrorosos - Jarmusch não está só a interrogar para onde foram "os sonhos da nossa juventude", está também a interrogar que é feito da "América da nossa juventude". E nessa perspectiva encontra a mesma espécie de "fantasma silencioso" que encontrava na Memphis de "Mystery Train", filmada como um museu de cera mitológico, rígido que nem um cadáver. Como aí, "Flores Partidas" também procura uma "imagem", mas encontra-a fragmentada, decomposta, paralisada.A melancolia de "Flores Partidas" aprofunda-se com esta dimensão, mas não deixa de ser por isso a descrição de um trajecto individual. Bill Murray - verdadeiro actor do "meio do caminho", como vimos no princípio do ano no filme de Wes Anderson - é usado de forma bem menos "clownesca" do que o habitual: é aqui sobretudo um rosto, lacónico, impávido, eternamente à espera de reconhecimento, à espera de reconhecer, elem e de ser reconhecido pelos outros (e é a falta de reconhecimento que o condena ao inferno). E é usado menos como elemento cómico do que como alguém cuja presença suscita expectativas cómicas que ficam quase sempre por confirmar - e nessa décalage entre expectativa e confirmação está porventura o segredo da desconcertante amargura de "Flores Partidas". O filme é dedicado a Jean Eustache, mas, sabendo-se da admiração que Jarmusch tem pelo cinema de Ozu (e pelo de Hou Hsiao-Hsien e Aki Kaurismaki, outros herdeiros de Ozu), não custa encontrar aí outra fórmula - e se calhar a fórmula mais importante - para o espírito de "Flores Partidas": eis o relato de uma "primavera tardia", um encontro fora de tempo com uma esperança em rota de colisão com uma resignação brutal, filmada com a melancolia elegíaca e o falso minimalismo que se podia esperar de um herdeiro de Ozu. A emoção, aqui, é silêncio e transparência. Quem não acredita, veja aqueles três ou quatro planos no cemitério - é preciso partir muita pedra para chegar a tanto com tão pouco. Mas enfim, o cinema é um bocado isso.

“O Plano Perfeito”: Com a Marca de Spike Lee (por Ricardo Calil) em cartaz no Roxy Multiplex - Santos


“O Plano Perfeito”, que estréia hoje no Brasil, é o que se convencionou chamar de “filme de encomenda”. O cineasta Spike Lee (“Faça a Coisa Certa”, “A Última Hora”) foi contratado por um produtor (Brian Grazer) para dirigir o roteiro de um terceiro (Russel Gewirtz).

Mais conhecido por suas diatribes raciais e sexuais, Lee poderia parecer uma escolha equivocada para a produção de um subgênero tão específico quanto o filme de assalto – que já rendeu algumas obras-primas como “Rififi” (1955), “O Grande Golpe” (1956) e “Um Dia de Cão” (1975). Mas muita gente irá se surpreender com o domínio que Lee demonstra sobre as convenções desse tipo de filme. Surpresa ainda maior será notar que, nas fissuras desse pequeno gênero, o cineasta conseguiu deixar impressas suas marcas pessoais.

Na excelente história bolada por Gewirtz, quatro assaltantes com uniformes de pintor, liderados por Dalton Russell (Clive Owen), invadem uma agência bancária de Nova York e seqüestram cerca de 50 pessoas. Para libertar os reféns, a polícia convoca o veterano detetive Keith Frazier (Denzel Washington). Já o dono do banco, Arthur Case (Christopher Plummer), convoca uma espécie de lobista, Madeline White (Jodie Foster), para também negociar com os ladrões e tentar reaver algo muito preciso que guarda na agência. Mas Russell revela-se um oponente muito mais inteligente do que eles imaginam, com um plano que parece não ter nenhum furo.Assim como o personagem, Spike Lee demonstra ter total controle da situação e um profundo conhecimento dos códigos do filme de assalto – que, na essência, é um jogo de esconde com o público. O cineasta sabe quando mostrar e quando ocultar elementos da trama, alterna habilmente momentos de tensão com outros de relaxamento, e sua câmera explora com a mesma elegância o “hui-clos” (situação sem saída) no banco e os espaços abertos de Nova York.Mas o que torna “O Plano Perfeito” um produto diferenciado não é sua precisão narrativa, mas o fato de Lee conseguir contrabandear muitas de suas obsessões pessoais para dentro das convenções do filme de ação. Ele consegue tornar particular o genérico. Todas as interações do filme – do ladrão com o detetive, deste com a lobista, desta com o dono do banco, de todos eles com os coadjuvantes – são relações de poder. Há no filme várias cenas com subtexto racial ou sexual, com personagens que sofrem preconceito pela cor de sua pele ou mulheres vistas apenas como objeto de desejo. Mas, no fundo, o que está sempre em jogo é o poder.

Nos filmes de Lee, o mundo não se divide entre brancos e negros, pobres e ricos, como se pode imaginar, mas sim entre aqueles que querem dominar e os que se deixam subjugar. O cineasta sempre prega que estes últimos se rebelem contra os primeiros. Às vezes, de forma direta, como em “Faça a Coisa Certa” ou “Malcolm X”. Em outras, de maneira indireta, como em “A Última Noite” e neste “O Plano Perfeito”.

Ainda que Lee tenha uma carreira irregular, que transita entre filmes brilhantes e outros decepcionantes, não dá para negar que ele é um dos cineastas mais coerentes e incisivos que existem na atualidade. Por trás de toda sua obra, mesmo de um filme de ação “inocente” como “O Plano Perfeito”, está o velho bordão de sempre, título de uma famosa música do Public Enemy: “Fight the Power”.

sábado, março 11, 2006

Crash: Um filme desonesto. Com seus personagens e seus espectadores (anônimo, publicado no Blog do Bonequinho)


Vamos soletrar que é para ficar claro: e-n-g-a-n-a-ç-ã-o.

Isso é “Crash”.

Doeu, fãs? Tenham certeza, aqui doeu mais. A gente fica torcendo para o medíocre “Brokeback Mountain” perder o Oscar... e ele vai e perde para algo ainda pior!

“Brokeback Mountain” é um filme sem-noção, mas é honesto nos seus tropeços. “Crash” é desonesto, manipulador, filme cheio de truquezinhos baratos. Para além dos problemas estruturais que tenha — e tem; mais sobre isso já, já — seu problema principal é moral mesmo. É um filme cretino com seus personagens, monta armadilhas narrativas para impeli-los em determinado curso e justificar ações mais à frente (o melhor exemplo é o comerciante iraniano, pintado como um completo imbecil numa cena muito artificial só para levá-lo a cometer um ato tresloucado mais à frente).

Poderia ser abjeto e habilidoso, mas não é

Pode-se argumentar que Altman (coitado, deve ter ficado constrangidíssimo ao ver o filme), influência óbvia de Paul Haggis, também é cruel com os seus personagens. Só que não é dissimulado; ataca-os de peito aberto, não fingindo “entender-lhes os motivos”. Com que cara um sujeito vende o seu filme como uma discussão a respeito do racismo e o abre com um diálogo “espertinho” tão repulsivo quanto aquele dos dois rapazes negros em que um deles reclama de ser confundido com bandido devido à cor da pele e, no fecho da cena, puxa uma arma e rouba um carro? É o atestado de intenções do filme, e “Crash” já fica mal na fita a partir dali.

Pode ficar pior? Claro. O filme pode ser desonesto com o espectador. Por exemplo? Sinto, mas o melhor exemplo é no fim. Pule o parágrafo seguinte se ainda não tiver visto.

Por exemplo, pode se vender como filme “corajoso”, “cru”, “realista” e, no fim, ser covarde, elegendo para morrer um personagem totalmente secundário, e (por duas vezes!), fingindo matar personagens queridos, entre eles uma criança, por meio de tomadas-sustinho de que o mais oportunista filme de serial-killer não seria capaz.

É abjeto. Poderia ser abjeto e ultra-habilidoso, mas não. Engana um pouco, mas não sem cochilos de fluência (Sandra Bullock some do filme) ou histórias porcamente concluídas (o triângulo Matt Dillon-Thandie Newton-Terrence Howard).

Ou seja: l-i-x-o.

Oscar 2006: Muita Viadagem, Muita Cientologia, Pouco Cinema (por Chico Marques para Trupe da Terra)


Nunca a entrega anual de prêmios da Academia de Artes e Ciências de Hollywood foi tão politicamente correta quanto nessa sua última edição.

Por conta da presença de "Brokeback Mountain" no páreo principal do Oscar, nenhuma piada sobre bichas foi disparada pelo apresentador Jon Stewart durante a cerimônia. Para se ter uma idéia dos cuidados que a produção do evento tomou , as únicas piadas do gênero na transmissão do Oscar foram ao ar pouco antes da cerimônia começar, em sketches pré-gravados com os ex-apresentadores da festa nos anos anteriores.

A melhor dessas piadas mostrava a "cabana ninho de amor" dos dois cowboys ao pé da Montanha Brokeback. De repente, de dentro dela, saem as cabeças de Chris Rock e Billy Crystal, dizendo que não podem apresentar a festa desse ano porquê estão muito ocupados. E voltam rapido para dentro da cabana.

Em seguida, Steve Martin e Dave Letterman, também ex-apresentadores em anos anteriores, posam de casal gay e alegam que não podem apresentar a festa este ano porquê precisam cuidar dos filhos de Steve, para que não assistam qualquer coisa na TV e cresçam "esquisitões". Detalhe, as crianças de Steve Martin tem cabelos grisalhos, idênticos aos de Steve.

Por último, o próprio Jon Stewart é acordado por uma insinuante Jennifer Lopez deitada ao seu lado na cama, e é convidado por ela para apresentar a festa deste ano. Ele acha que está sonhando, daí vira para o lado e volta a dormir. Então, logo em seguida, surge George Clooney, igualmente deitado ao seu lado na cama, fazendo a mesma proposta. Stewart olha para a cama, sorri e aceita de imediato.

Pois bem, toda e qualquer brincadeira com viadagem nos Oscar 2006 parou por aí.

Assim que começou a festa, acabaram-se as piadas sobre bichas.

Toda essa correção parecia indicar que "Brokeback Mountain" seria o grande vencedor da noite. Mas, como todos vimos, não foi bem o que aconteceu. "Crash", filme do canadense Paul Haggis, surgiu quase do nada e em poucas semanas alcançou a liderança na preferëncia dos membros votantes da Academia.

Como isso aconteceu?

Muito simples. "Crash" é todo construído em torno dos fundamentos da Cientologia, que é a religião da moda de 9 em cada 10 "mentes privilegiadas" de Hollywood -- que, diga-se de passagem, são os membros votantes na Academia.

Cientologia, para quem não sabe, é uma espécie de Budismo sem divindades, com toques de Jung e muita "filosofia de auto-ajuda". Ou seja, 171 forte. Quem quiser saber mais que procure pela Internet. Eu me recuso a fazer divulgação desse tipo de empulhação.

Pois 'Crash" parte da premissa que as pessoas em Los Angeles não se relacionam. Trombam-se umas com as outras nas ruas, de diversas maneiras, todas pouco saudáveis, e -- ai ai ai -- sempre movidas por algum tipo de intolerância racial. O que é uma associação tão leviana quanto cretina, que obviamente não resiste a nenhum estudo sociológico sério, mas mesmo assim parece estar sedimentada na "base filosófica" da Cientologia.

Com todos esses elementos em mãos, Paul Haggis, o diretor e roteirista de "Crash", desenvolveu um "filme mosaico" que não aprofunda em nenhum dos temas levantados por seus diversos personagens, todos aparentemente à deriva de suas próprias existências. Até que então, uma espécie de consciência cósmica trata de começar a acertar o meio de campo de todos eles e a distribuir lições de vida, até porquê é Natal e -- pasmem -- está nevando em Los Angeles, coisa que raramente acontece.

Ou seja, "Crash" bem que gostaria muito de ser uma espécie de versão junguiana e moderna de "It's A Wonderful LIfe", de Frank Capra. Mas não é coisa alguma. É um dos filmes mais ocos, mais rasos, mais pretensiosos e mais decepcionantes vindos da cena independente de Hollywood nos últimos anos. É um "Magnólia" coado e desnatado. Um "Short Cuts" unidimensional. Um "Grand Canyon" esquálido, bem ao espírito da Era Bush. O fato de ter sido premiado mostra claramente o quanto a Indústria está aberta a projetos de filmes demagógicos e pouco sérios. O Festival Sundance com certeza vai sentir os efeitos desse oportunismo artístico em suas próximas edições.

Fora isso, tivemos a pasmaceira de sempre. Steven Spielberg saiu injustiçado com seu ótimo "Munique". George Clooney levou a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante por "Syriana" -- deveria ter ido para William Hurt, por seu trabalho espetacular em "Marcas da Violênica", de David Cronenberg --, e seu belíssimo "Boa Noite...e Boa Sorte" terminou a noite sem nenhum Oscar. Os filmes de Woody Allen e Terrence Malick foram solenemente esnobados, e voltaram para casa de mãos abanando. E "Capote" e "Walk The Line" levaram menos prêmios do que mereciam.

Para completar, "Brokeback Mountain" acabou privado de sua Apoteose Final, perdendo o prêmio de Melhor Filme, apesar de ser o franco favorito da noite. A gritaria do Lobby Gay na Imprensa Mundial no dia seguinte à Festa dos Oscars chegou a beirar o ridículo. Um Webgrupo chamado 'Ultimate Brokeback Forum" tentou deflagrar uma campanha para arrecadar fundos com as Comunidades Gay no mundo inteiro para publicar anúncios de desagravo à decisão da Academia. Isso no mundo inteiro. Com o Lobby Gay é assim: hoje, "Brokeback Mountain"; amanhã, o mundo...

Por mais que os defensores incansáveis de "Brokeback Mountain" neguem-se a entender o que aconteceu, a coisa toda é muito clara para quem está do lado de fora. O Lobby Gay é chato. Comportou-se de forma ostensiva nos últimos meses, puxando bilheteria para o filme no mundo inteiro. O discurso cansou, e eles não se deram conta. Até a não-premiação de Philip Seymour Hoffman eles defenderam, sob a alegação de que sua personificação totalmente amoral de Truman Capote servia mal à Causa Gay. Queriam que o fraquíssimo Heath Ledger levasse o Oscar de Melhor Ator, imaginem só...

Além do mais, ainda transformaram a vida do coitado do Ang Lee num inferno. Fizeram dele um "ícone gay" ocidental, apesar dele ser heterossexual e pensar como um oriental. Em consideração a ele, a Produção da Festa dos Oscars fez questão de mostrar o tempo todo a imagem da mulher dele na poltrona ao lado, para dar um cala boca nas bichas que criaram a intriga. Por muito pouco elas não arrumam uma encrenca internacional com o Governo de Taiwan, que considera Ang Lee orgulho nacional.

Não há o que discutir. Na queda de braço entre o Lobby da Cientologia a o Lobby Gay, o Cinema acabou levando a pior na Noite dos Oscars.

Amor, Deus e Assassinato (por Arthur Dapieve para No Minimo.com)


Joaquin Phoenix conheceu Johnny Cash cerca de seis meses antes de sequer imaginar que viria a interpretá-lo no cinema. O músico era cinéfilo e convidou o ator para jantar em sua casa de Hendersonville, Tennessee, por causa da atuação dele em “Gladiador”, como o invejoso, covarde e parricida imperador Commodus.

Phoenix ouviu-o cantar “Banks of the Ohio” com June e rezar antes da refeição. Ouviu-o, também, elogiar seu pedaço favorito no filme de Ridley Scott: “É quando você diz ‘seu filho gritou como um menina enquanto o pregavam na cruz e sua mulher gemeu como uma prostituta enquanto eles a estupravam de novo e de novo e de novo.’”

Contada pelo aturdido ator, a história está numa das reportagens da edição especial da revista inglesa “Q”, dedicada a Cash e à história do country rock. O vôo sem escalas da piedade à crueldade define o músico que, junto com Elvis Presley, seu colega de gravadora Sun, foi o único a ser admitido tanto no Rock and Roll quanto no Country Hall of Fame.

“Johnny e June” não é o filme que eu teria feito sobre Johnny Cash, mas e daí? Três anos antes de morrer, o que ocorreu em 2003, aos 71 anos, ele selecionou, de sua vasta obra, uma antologia em três volumes, que se chamavam “Love”, “God” e “Murder”. Estes foram os grandes temas de sua vida. O recorte do filme dirigido por James Mangold é, pela presença inspiradora de June, muito mais amor que Deus ou assassinato.

Eu teria preferido um filme mais sombrio sobre aquele que, segundo Nick Cave, na mesma “Q Classic”, pela primeira vez o fez pensar que a música poderia ser má. Nick Cave, aquele crooner dos infernos. Com quem Cash gravou “I’m so lonesome I could cry”, de outra lenda tenebrosa do country, Hank Williams, e de quem Cash gravou “The mercy seat”, cantada por um sujeito que frita na cadeira elétrica. Sim, mas e daí?

Num ano em que nenhum dos candidatos a melhor filme me entusiasmou, meu interesse maior estava na disputa pelo Oscar de melhor ator. Torci por Phoenix. Não apenas porque seu desempenho de fato é impressionante — na cena em que o cantor sai da detenção por posse de anfetaminas e põe a cara na porta do quarto da filha Rosanne, Phoenix é Cash — mas porque torcer pelo intérprete era uma forma de torcer pelo personagem.

Essa torcida, no entanto, não ocorreu sem alguma divisão. Porque dois dos outros personagens que “disputavam” o Oscar, os jornalistas Edward R. Murrow (interpretado por David Strathairn) e Truman Capote (por Philip Seymour Hoffman, o ganhador), também me são caros. Hoffman, porém, já vivera na tela um coleguinha que me é ainda mais caro: ele foi o crítico de rock Lester Bangs em “Quase famosos”, de Cameron Crowe.

Dos concorrentes verdadeiramente ficcionais ao Oscar, não vi Terrence Howard, de “Ritmo de um sonho”, e detestei a atuação de Heath Ledger em “Brokeback Mountain” (Jake Gyllenhaal, sim, estava ótimo). Aquele jeito de falar com a boca meio fechada é coisa de quem estudou os faroestes de John Wayne ou Clint Eastwood e não entendeu nada.

Aproveito para responder a leitores que perguntam o que achei de “Brokeback Mountain”, injuriados porque a maioria dos “bonequinhos” do GLOBO não gostou do filme de Ang Lee. Não gostei nem desgostei. É um filme tão bonito (inclusive na trilha do argentino Gustavo Santaolalla, responsável pelas de “Amores perros” e “Diários de motocicleta”) quanto banal. Se os protagonistas não fossem dois caubóis, a platéia cairia na risada nas horas em que eles discutem a relação. A correção política morde os lábios.

De volta a “Johnny e June”, a minha torcida no Oscar se estendeu à ganhadora Reese Witherspoon, apesar do instinto mais primitivo de querer passar tudo para o nome de Keira Knightley, concorrente pelo filme de moças “Orgulho e preconceito”. Ambas, aliás, compartilham um certo prognatismo, o que lhes dá um ar deliciosamente petulante. Reese está muito bem como June Carter, a mulher que resgatou Cash de seu Demônio pessoal. E, cabelos tingidos de castanho escuro, está até mais bonita que em seu louro natural.

No filme, ela e Phoenix conseguem, sobretudo nas cenas de palco, reproduzir a química que sempre arrepiou quem quer que tenha ouvido uma gravação de “Jackson”. Mangold tê-los filmado quase sempre de costas, de frente para a platéia, do ponto de vista do baterista, digamos assim, nos passa uma terna sensação de intimidade. Além disso, a reveladora seqüência em Folsom Prison, que abre e fecha “Johnny e June”, capta bem o espírito dos eletrizantes shows que Cash fez para os detentos de lá e de San Quentin.

A razão da empatia entre o astro do Tennessee e os assassinos da Califórnia está nas notas do encarte do volume “Murder” daquela tripla antologia de 2000. Nelas, o cineasta Quentin Tarantino escreveu: “Cash canta sobre homens que estão tentando escapar. Escapar da lei, escapar da pobreza em que nasceram, escapar da prisão, escapar das pessoas que os torturam. Mas uma coisa da qual Cash nunca os deixa escapar é do remorso.”

É esta ambivalência que permeia também o causo relembrado por Phoenix. Ou ainda o diálogo do filme em que os executivos da gravadora Columbia alertam que seu público cristão pode não gostar de ouvi-lo cantar para criminosos. “Então, eles não são cristãos", diz Cash. Ele sacou que não há bondade nenhuma em perdoar quem nunca pecou.

O verdadeiro segredo de Brokeback Mountain (por Reinaldo Azevedo para Primeira Leitura)


Um espetáculo de hipocrisia, com todos os rigores do preconceito às avessas, que é a essência do (não) pensamento politicamente correto, armou-se em torno do filme O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. Manifestações e críticas as mais diversas têm quase sempre a mesma intenção: negar que seja um filme gay. Na imprensa brasileira e estrangeira, o que mais se lê é que se trata de um “filme de amor”, “convencional”, “sensível” etc. Até parece que o enredo, com personagens heterossexuais, daria a mesma audiência, geraria a mesma curiosidade ou assumiria a aura, vá lá, “de resistência” — todas essas características, enfim, ora associadas à obra. Se um deles fosse uma mocinha, não daria um curta-metragem. Melhor seria filmar a suruba das ovelhas (se é que ovelha faz suruba).

Foi preciso que seu diretor, que recebeu o Oscar, deixasse claro, em seu breve discurso, o óbvio: trata-se de um filme gay. É uma revelação feita depois de a fita ter seduzido platéias mundo afora (Lee não é besta). Qual o problema? Nenhum. Mas, pelo visto, o homossexualismo ainda precisa ser tratado como “o amor que não ousa dizer seu nome” para preservar sua aura de quase mistério; para que os homossexuais, na contramão de sua militância explícita, que pede visibilidade, possam se ocultar numa casca de especialidade e diferença que os tornariam superiores à massa heterossexual. Mutadis mutandis, o mesmo se dá com a ideologia: o segredo da eficiência está no ocultamento.

A militância, no caso da estética, seria tão mais efetiva, eficaz, quanto mais se escondesse. Tanto quanto o discurso político dos gays é convidado a sair do armário, o da arte gay teria de entrar. A dimensão política do proselitismo ganha a rua nas paradas e fala à razão, apelando à igualdade de direitos, à cidadania, à Constituição. Já a dimensão artística, bem, esta tem de se acrisolar, limpando-se das impurezas da militância para seduzir: quer falar ao coração.

Negar que Brokeback Mountain é uma elegia — no sentido literal da palavra — cinematográfica ao amor gay me parece uma soma de preconceito e ambição a um só tempo. O preconceito: caso se admita que se trata de um filme gay, estaria diminuído o alcance dos dilemas existenciais que ele propõe. Por quê? Indivíduos gays podem e são, quero crer, tão complexos ou tão rasos, tão idiotas ou tão profundos quanto qualquer heterossexual. A ambição: ao se tentar retirar o decalque gay do filme, insinua-se que o conflito vivido pelos dois pastores — não são caubóis — poderia ser experimentado por quaisquer homens. Um belo dia, você vai até uma montanha com o seu amigo, perde o sono, tem uma ereção e faz sexo com ele. Será assim? Por prudência, se ele o convidar para beber ou jantar, melhor tomar cuidado para não ser bebido ou jantado: vai que você não tenha savoir vivre para encarar o dia seguinte... Convenhamos: trata-se de uma grossa bobagem.

Assim, percebam, a estratégia de ocultar o real caráter do filme (não renegado pelo diretor, reitero) oscila entre dois extremos: nega-se que seja uma obra gay para que aquele amor possa ser universalizado como um drama humano; tornado um drama humano, é como se cada um de nós fosse convidado a perscrutar os limites da própria sexualidade: afinal, aquilo poderia ou não acontecer com a gente? A resposta, obviamente, é não. “Não” desde que o indivíduo seja heterossexual. É simples assim. A tal indústria cultural, também ela, entra alegremente nessa dualidade. Caso seja obrigada a encarar o lado militante da fita, as coisas se complicam comercialmente. Vendida a obra como um Romeu e Julieta, eventualmente Romeu e Romeu, tudo fica mais tranqüilo. A síntese: eles se amam, mas o mundo conspira contra a beleza.

Eu não conhecia o conto Brokeback Mountain, de Annie Proulx, em que se baseia o filme. Como literatura, é infinitamente inferior à obra de Lee como cinema. Mas há um dado interessante. Seus pastores nada têm dos bonitões escolhidos pelo diretor para representar o misto de idílio amoroso e desaire. Ao contrário até: entende-se que são tipinhos bem ordinários, corriqueiros, feiosos.

É claro que dois machões se agarrando na montanha falam mais aos corações e à curiosidade do que, por exemplo, os travestis e amalucados de Almodóvar ou, como é o caso do conto, um dentuço e um narigudo que decidem trocar fluidos corporais. As personagens do cineasta espanhol têm uma sexualidade marcada, carregam traços óbvios de desvio de comportamento em relação à norma socialmente aceita, desafiam o padrão com seus exageros e rococós sentimentais. E, curiosamente, não se percebem em sua obra traços de misoginia — muito ao contrário. Não é um mundo que exclui as mulheres ou que as veja como empecilho à felicidade dos homens.

Ang Lee, em seu filme assumidamente gay (na hora do Oscar...), evita os trejeitos — e nisso está de acordo com a obra original —, mas desloca para a montanha duas figuras olímpicas. É como se dissesse: “São homens demais para ser gays, são belos demais para ser gays. E, no entanto, são gays”. E não há como ignorar: as mulheres são apêndices numa relação que, com efeito, faz jus ao conceito de “amor viril”. Lee trata o homossexualismo como assunto de macho. A mulher tem de sair da sala e ir passar o café ou fazer tricô. Cadê as feministas, que não gritam? Mulheres se acabam de chorar no cinema. Estranho. Seu eu fosse mulher, chutaria o balde.

O verdadeiro segredo de Brokeback Mountain, o filme, está em fazer uma elegia homossexual que não ousa dizer seu nome, como se a transa dos dois pastores fosse fruto de uma conspiração da natureza que os cerca, que a todos inclui, também os espectadores (e nada pode ser mais militantemente “gay” do que isso) e em demonstrar o destino, digamos, nada invejável dos dois rapazes. E, é bem possível, talvez isso seja do agrado de Hollywood. Se eles tivessem descido da montanha, montado uma ONG e saído EUA afora defendendo que dois pastores têm mais o que fazer do que cuidar de ovelhas, talvez a obra não fosse assim tão aplaudida. Talvez nem merecesse um filme. À platéia heterossexual que mal segura as lágrimas talvez conforte o fato de que, com efeito, aquela coisa toda não termina bem.

Ang Lee abre espaço, vocês verão ou viram, para o proselitismo militante. E se os dois tivessem assumido o seu amor? E se tivessem tido a coragem de ficar juntos? E se tivessem enfrentado as convenções? E se mandassem as chatas das mulheres plantar batatas? Bem, caros, é como perguntar: e se os Montecchio e os Capuleto tivessem se entendido a tempo? Amor gay que dá certo acaba desfilando na parada, entendem? E se banaliza, como um amor heterossexual qualquer. O casal acaba no supermercado quebrando o pau por causa da marca do macarrão, como já vi uma vez. Cadê a poesia quando seus filhos começam a brigar no gôndola por causa do sabor da biscoito recheado? Afinal, a vida amorosa de 99,9% das pessoas não segura uma página ou uma seqüência de 10 minutos, gay ou não. É o desastre que alça o atraca-atraca dos machões à condição de poesia superior.

Irrelevâncias e relevâncias
O filme, em si, é irrelevante. Não dou a menor importância para o que as pessoas fazem entre quatro paredes. Acho a militância homossexual chata e burra, como qualquer outra. As questões de gosto, tornadas causas, logo ambicionam ou à condição de uma nova moralidade ou de uma ditadura de comportamento. Tenho amigos homossexuais e heterossexuais, masculinos e femininos. Como não faço sexo com eles, não me interessa como se comportam na cama. Faço e ouço piadas sobre o tema, o que é comum. Mas não abro espaço para que me contem aventuras. Não quero saber. As pessoas as mais inteligentes, interessantes, atraentes ficam idiotas falando de suas intimidades. Assim, o filme me interessa como um fenômeno de recepção.

O que quero dizer com isso? Brokeback Mountain é tão “não-gay” quanto Diários de Motocicleta, de Walter Salles, por exemplo, é um filme “não-político”. Vocês se lembram, né? Aquele que narra a viagem do Che Guevara pré-revolução cubana pela América Latina. Vistos ambos no detalhe, há até uma similaridade de linguagem. A paisagem física e humana entre encantadora e inóspita ia compondo a têmpera do revolucionário, assim como a vasta solidão da montanha aproxima os pastores. No filme de Salles, Che era um sem-ideologia (o que é mentira histórica), que vai desenvolvendo seu senso de justiça forçado pela conspiração dos fatos. No filme de Lee (e também no conto), os dois moços sobem heterossexuais e descem sabidos de todos os segredos. Ora, ao subir, cada um deles já era o que era, ainda que não tivessem provado da fruta do pecado.

Eis, pois, o fenômeno que interessa debater. Nos dias que correm, os temas que exploram as fronteiras do certo e do errado, que remetem a escolhas perigosas, políticas ou sentimentais, morais ou éticas, acabam se perdendo numa superfície gelatinosa que, rigorosamente, não ousa dizer seu nome. Na revista Primeira Leitura deste março, Michel Laub escreve sobre os filmes Munique, de Steven Spielberg, e Paradise Now, de Hany Abu-Assad. Também nos dois casos, faz-se um esforço para diluir escolhas no que eu ousaria chamar de poço de clichês dialéticos, onde tudo é nada, nada é tudo, o certo está sempre no relativo, e o telespectador é permanentemente convidado a não ter uma opinião, a flertar com todas as possibilidades.

Brokeback Mountain é um filme gay que tenta não parecer gay. Mas os diretores têm o direito de fazer filmes gays, certo? Paradise Now é um filme que defende o terrorismo, embora se esforce para apresentar uma “leitura humana” dos facínoras. E há quem ache que isso é também um direito. Bem, nesse ponto, eu seria obrigado a começar outro texto...

‘Brokeback’ é um filme sobre heróis machos (por Arnaldo Jabor para O GLOBO)


Eu não queria ver o filme “Segredo de Brokeback Mountain”. Não queria. Ver filme de viados , eu? (Escrevo viado porque, como disse Millôr, quem escreve “veado” é viado ). Muito bem; eu resistia à ideia, mais ou menos como o Larry David (o roteirista de “Seinfeld”) disse, num artigo engraçadíssimo, que tinha medo de virar gay se ficasse emocionado.

O viado sempre encarnou a ambigüidade de nossos sentimentos. Claro que, hoje, os civilizados todos dizem que “tudo bem, que são contra a homofobia” e todo o bullshit costumeiro. Eu mesmo já fiz filmes em que viados são protagonistas, em que o ator principal escolhe o homosexualismo no final (“Toda nudez será castigada”), já filmei travesti em “Eu te amo” e em “Eu sei que vou te amar”, além da biba louca do “O casamento”, em que o grande ator André Valli dá um show inesquecível. Em todos os meus filmes há uma boneca ativa e digna. E, no entanto, eu não queria ver o tal filme do Ang Lee, apelidado pelos machistas finos de “Chapada dos Viadeiros”.

Minhas razões eram mais discretas, intelectuais: “Ah... porque o Ang Lee é um cineasta mediano, ah... porque será mais um filme politicamente correto, onde o amor de dois caubóis é justificado romanticamente... Vou fazer o que no cinema? Ver mais um panfletinho que ensina que os gays devem ser compreendidos em seu ”desvio“? Não. Não vou”, pensei.

Aliás, eu sou do tempo em que os viados apanhavam na cara em plena rua. Havia pouquíssimos gays declarados no Brasil. No Rio, havia o Murilinho... cantor de fox em boates, havia o Clovis Bornay e poucos outros... O viado passava na rua sob os rosnados dos boçais prontos para lhes tirar sangue. E, no anonimato, enxameavam os pobres “pederastas”, de terno e gravata, pais de família se esgueirando nas esquinas, nas noites escuras, em busca de satisfação.

Mais tarde, com o tempo, surgiram as “bichas loucas”, que se assumiam com um toque de autoflagelação, de autoderrisão, caricaturas da mãe odiada e amada, que berravam e desfilavam nos carnavais num freje humorístico, que até hoje alimenta nossos shows na TV. A “bicha” virou uma personagem clássica do humor, como os palhaços e os bacalhaus de circo. E tudo bem... são engraçados mesmo.

Depois, com os direitos civis dos anos 60, surgiu a gay power , com homossexuais fortes e de bigode, malhados, cheios de orgulho. A viadagem virou um poder político importante, claro, mas até meio sério demais, aspirando a uma “normalidade” que contrariava sua “missão” trangressiva que tanto nos acalmava. Como disse Paulo Francis um dia, sacaneando-os: “Se esses caras querem todos os direitos e deveres dos caretas como nós, qual é então a vantagem de ser viado ?”

Em suma, por mais que “aceitemos” os gays, eles sempre foram uma fonte de angústia, pois atrapalham nosso sossego, nossa identidade “clara”. O gay é duplo, é dois, o viado tem algo de centauro, de ameaçador para a unicidade do desejo. A bicha louca ou o travesti, a biba doida ou o perobo , o boy , o puto, a santa, a tia, a paca, todos eles nos tranqüilizavam com suas caricaturas auto-excludentes. Já o gay sério inquieta. O gay banqueiro, o gay de terno, o gay forte, o gay caubói são muito próximos de nos, a diferença fica mínima.

Por isso, eu não queria ver o tal filme dos caubóis. Como? Caubói de mãos dadas, dando beijos românticos, com tristes rostos diante do impossível? Não. Eu, não. Mas, aí, por falta de programa, “distraidamente”... (aí, hein, santa?...) fui ver o filme. E meu susto foi bem outro. O filme não me pedia aprovação alguma para o homossexualismo, o filme não demandava minha solidariedade. Não. Trata-se de um filme sobre o império profundo do desejo e não uma narração simpática de um amor “desviante”. O filmes se impõe assustadoramente. Os dois caubóis jovens e fortes se amam com um tesão incontido e são tomados por uma paixão que poucas vezes vi num filme, hetero ou não. Foi preciso um chinês culto para fazer isso. Americano não agüentava. Nem europeu, que ia ficar filosofando. “Brokeback” é imperioso, realista, sem frescuras. Eu fiquei chocado dentro do cinema, quando os dois começam a transar subitamente, se beijando na boca com a fome ancestral vinda do fundo do corpo. O filme não demandava a minha compreensão. Eu é que tinha de pedir compreensão aos autores do filme, eu é que tive de me adaptar à enorme coragem da história, do Ang Lee. Eu é que precisava de apoio dentro do cinema, flagrado, ali, desamparado no meu machismo “tolerante”. Eu é que era o careta, eu é que era o viado no cinema, e eles, os machos corajosos, se desejando não como pederastas passivos ou ativos, mas como dois homens sólidos, belos e corajosos, entre os quais um desejo milenar explodiu. Não há no filme nada de gay, no sentido alegre, ou paródico ou humorístico do termo. Ninguém está ali para curtir uma boa perversão. Não. Trata-se de um filme de violento e poderoso amor. É dos mais emocionantes relatos de uma profunda entrega entre dois seres, homos ou heteros. Acaba em tragédia, claro, mas não são “vítimas da sociedade”. Não. Viveram acima de nós todos porque viveram um amor corajosíssimo e profundo. Há qualquer coisa de épico na história, muito mais que romântica. Há um heroísmo épico, grego, como entre Aquiles e Pátroclo na “Ilíada”, algo desse nível. O filme não é importante pela forma, linguagem ou coisas assim. Não. Ele é muito bom por ser uma reflexão sobre a fome que nos move para os outros, sobre a pulsação pura de uma animalidade dominante, que há muito tempo não vemos no cinema e na literatura, nesses tempos de sexo de mercado e de amorezinhos narcisistas.

Merece os Oscars que ganhou. Este filme amplia a visão sobre nossa sexualidade.

sexta-feira, março 03, 2006

Muito Cuidado, Vem Ai A Síndrome Brokeback (por Chico Marques para Trupe da Terra)


Há muitos anos uma cerimônia de entrega dos Oscars não despertava tamanho assanhamento da parte da Imprensa especializada e não-especializada em cinema do mundo inteiro.

O motivo, óbvio, é "Brokeback Mountain", de Ang Lee, o primeiro filme "mainstream" da história de Hollywood a mostrar abertamente uma relação amorosa entre dois cowboys.

Eu disse filme "mainstream". Nada a ver com "Lonesome Cowboys", a produção underground sobre cowboys viadinhos que Andy Warhol rodou no final dos anos 60. Nada a ver também com o festival de insinuações sobre viadagem que existem nos roteiros dos melhores westerns de Howard Hawks e Nicholas Ray.

Não, em "Brokeback Mountain" temos finalmente nas telas a "coisa verdadeira", com direito a imagens dos personagens dos atores Heath Ledger e Jake Gyllenhal em nada sutis "conjunções carnais", com direito a explosões de quase violência sexual, gritos de prazer e dor e, claro, muito bafo quente na nuca de Jake.

Gracinhas à parte, "Brokeback Mountain" é um filme pioneiro, e são inegáveis as suas virtudes, com destaque para o roteiro primoroso de Larry McMurtry. Mas convenhamos, o assanhamento da Imprensa está demais, tem gente que anda exagerando. Um sujeito da Revista PREMIERE argumentou que Heath Ledger -- o cowboy mais macho do filme -- merece mais o prêmio de Melhor Ator do que Philip Seymour Hoffman, pois considera seu personagem muito mais emblemático para a causa gay do que a espetacular personificação que Hoffman fez do genial escritor americano Truman Capote -- curiosamente, um homossexual assumido desde sempre, ao contrário dos cowboys de armário de Ang Lee.

Eu não tenho nada contra homossexuais, mas confesso que fico bastante irritado quando eles tentam impor certos pontos de vista que só dizem respeito a eles como sendo "senso comum". Caiu nas minhas mãos um dia desses um texto publicado num jornal local em que um articulista gay, com linguajar acadêmico, defendia o filme com frases assombrosas como 'o amor é o oeste da alma" e "o establishment careta assiste atenta e respeitosamente o amor entre dois homens", entre outras pérolas.

Daí fiquei pensando no quão ridículo vai ser para a Academia de Artes e Ciências de Hollywood se decidir premiar "Brokeback Mountain" no próximo domingo por "razões políticas", e não por seus méritios artísticos. O motivo das aspas nas "razões políticas" é justamente a força do Lobby Gay da Indústria Cinematográfica, que não só fica mais poderoso, como consegue mais e mais espaço na Imprensa a cada ano que passa.

Se isso acontecer, não se espantem se nos próximos anos as produções de Hollywood acabarem assoladas por uma espécie de Síndrome Brokeback, que vai proporcionar às bichas da Indústria Cinematográfica um tipo de fiscalização semelhante ao que a Sociedade Protetora dos Animais faz com os bichinhos utilizados em filmes.

Acham que eu estou delirando?

Pois anotem aí: se a Indústria se render ao Lobby Gay que empurra (opa!) os responsáveis por "Brokeback Mountain" para o palco da Festa dos Oscars desse ano, nunca mais vamos poder ver bichas divertidas nos filmes de Hollywood. De agora em diante, só homossexuais com muita dignidade e com exemplos de vida edificantes. "Gaiola das Loucas", nunca mais. Eddie Murphy imitando policiais gays sadomasoquistas com língua presa da Polícia de San Francisco, nunca mais. Norm McDonald cantando "Mamas Don't Let Your Babies Grow Up To Be Gay Cowboys" no show de David Letterman, nunca mais.

E como se não bastasse isso tudo que cerca "Brokeback Mountain", vamos ter ainda na próxima cerimônia dos Oscars um show de hipocrisia na entrega a Robert Altman do Prêmio por Contribuição à Arte Cinematográfica. Justo ele, Altman, o cowboy fora-da-lei de Hollywood, que sempre manteve sua independência diante das regras dos Grandes Estúdios, e que achou uma maneira de conseguir sobreviver artisticamente à margem da própria Indústria. Vai ser engraçado, ainda mais se rolar alguma saia justa com os Membros da Academia, o que é bem provável que aconteça.

E talvez tenhamos ainda outro notório desafeto de Hollywood faturando o Oscar de Melhor Roteiro Original. Nada menos que Woody Allen, com seu soberbo "Match Point". Se isso acontecer, e mais uma vez não aparecer por lá para pegar a estutueta, ele jamais será perdoado. A não ser que, depois de uma vida inteira dedicada às mulheres, ele decida declarar-se gay. Aí tudo bem, perdoam ele na hora.Cuidado, Hollywood tem andado assim de uns tempos para cá. É a Síndrome Brokeback em ação. Preparem-se para o pior, pois não vai ser nada fácil daqui por diante. Conseguem imaginar como seria a Inquisição Espanhola com plumas e lantejoulas? Ou o McCarthismo com trilha sonora do ABBA? Pois vão descobrir...

A não ser que a Academia sofra uma recaída de seus ideais liberais e prefira premiar no próximo domingo o belo e desconcertante "Boa Noite, e Boa Sorte", de George Clooney, certamente o filme mais americano de todos os que estão no páreo do Oscar, até agora visto por poucos (por ter sido rodado em preto e branco), e que é um tapa na cara de qualquer um que viva de expedientes mentirosos e autoritários. E isso vale tanto para a hipocrisia de George Bush, ao fingir desconhecimento de causa em relação ao estrago que o Furacão Katrina seria capaz de fazer (e fez) no Sul dos Estados Unidos no início do ano passado, quanto para a cretinice da comunidade gay americana ao rejeitar "Capote", por achar que o caráter duvidoso de Truman Capote serve mal à causa gay.

Se "Boa Noite, e Boa Sorte" ganhar, eu juro que saio pelado pela rua na madrugada de segunda, fantasiado de Oscar, com o corpo coberto de gel dourado, abraçado a uma bandeira americana, e cantando "There's No Business Like Show Business".

quinta-feira, março 02, 2006

A brilhante amoralidade de Woody Allen (por Ricardo Calil para NoMinimo)


Não são necessários mais do que alguns minutos para perceber que “Match Point – Ponto Final”, que estréia hoje no Brasil, é um filme bastante diferente dos últimos realizados pelo cineasta norte-americano. A tipologia dos créditos de abertura continua a mesma, mas a trilha de fundo não é mais algum standard de jazz, e sim a ária “Una Furtiva Lacrima”, de Donizetti.

Dessa vez, a produção não ficou por conta da Dreamworks, mas da BBC – o que ajuda a explicar outras novidades. Entre os membros da equipe, estranha-se a ausência de colaboradores habituais de Allen, como o designer de produção Santo Loquasto e o diretor de fotografia chinês Zaho Fei. Londres substituiu Nova York como cenário principal do filme, e abastados ingleses viraram protagonistas no lugar dos intelectuais americanos.

Allen contentou-se em ficar atrás das câmeras, o que não chega a ser um fato estranho em sua carreira. A boa nova é que não há nenhum jovem ator à vista imitando os trejeitos do velho comediante. Por fim, os diálogos de humor e as cenas de pastelão deram lugar a uma fábula moral e a um visual mais refinado.

A mudança de ares só fez bem a Allen. Dizer que “Match Point” é o melhor filme do cineasta em muitos anos não significa grande coisa, visto que ele vinha de uma longa série de comédias pouco memoráveis. Será melhor afirmar que se trata de uma das melhores obras de sua carreira e uma das produções mais provocadoras do cinema recente.
Apesar das várias novidades, a história de “Match Point” se parece muito com “Crimes e Pecados” (1989), até hoje o melhor filme dramático do diretor, em que Martin Landau interpreta um homem que precisa escolher entre a esposa e a amante. Na trama, o ex-jogador profissional de tênis Chris Walton (Jonathan Rhys Meyers) começa a dar aulas para o jovem milionário Tom Hewitt (Mathew Goode). Chloe (Emily Mortimer), irmã de Tom, logo se apaixona por Chris, mas este se interessa pela atriz americana Nola (Scarlett Johansson), noiva de Tom. Em um dado momento, ele terá de decidir entre o conforto material proporcionado pela primeira e o furor passional oferecido pela segunda. A saída encontrada pelo protagonista para resolver o dilema é uma medida extrema.

Da mesma forma que “Crimes e Contravenções”, “Match Point” sofre forte influência de Fiódor Dostoiévski, que Chris aparece lendo em uma determinada cena. Como o autor russo, o cineasta americano quer discutir as implicâncias morais de ações condenáveis. Mas pode-se dizer que os dois filmes representam uma negação de Dostoiévski. Na obra-prima “Crime e Castigo” (1866), o escritor defende a idéia de que todo crime acaba sendo pago de uma forma ou de outra. Allen contrapõe que um assassinato nem sempre termina em condenação ou em culpa.

Desde o monólogo de abertura do filme, o cineasta argumenta que há um componente fundamental, embora subestimado, a determinar o destino: a sorte ou o acaso. Nessa primeira cena, vê-se uma troca de bola sobre uma rede de tênis, até que ela bate na fita, e a imagem é congelada. Se a sorte está a nosso favor, nos lembra o cineasta, a bola cai do outro lado da quadra. No final do filme, em um achado brilhante, essa cena irá se repetir com outro objeto – e o lugar onde ele cai será determinante para o desfecho da trama.

Para Allen, o crime às vezes compensa. Há um grau de amoralidade nessa idéia que torna seu filme muito mais ousado do que o dos caubóis gays ou o dos agentes secretos israelenses. Em outras palavras, “Match Point” foi o grande injustiçado do Oscar neste ano, ao lado de “Marcas da Violência”, de David Cronenberg.

Outro absurdo foi a não-indicação de Scarlett Johansson ao prêmio de melhor atriz. Mais do que uma jovem mulher deslumbrante, ela é uma das raras estrelas verdadeiras surgidas no cinema americano em muito tempo. Allen, que não é bobo nem nada, vai usá-la como protagonista em dois filmes seguidos – privilégio que só costuma oferecer às atrizes com quem está casado. Com “Match Point”, o veterano cineasta prova que seu talento continua em forma e que mantém seu olhar aguçado para garotinhas.

A autobiografia de Truman Capote (por Ricardo Calil para NoMinimo)


Em um excelente perfil de Truman Capote (1924-1984), o mestre Ivan Lessa lembra um significativo “causo” sobre o escritor norte-americano. Capote, Gore Vidal e Norman Mailer falavam sobre seus livros em um sarau literário, até que o primeiro interrompeu os outros dois: “Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não”.

Capote era ególatra, arrogante, mitômano e afetado. Mas, naquele momento, disse uma verdade difícil de ser questionada. No grupo de gigantes da literatura, o baixinho Truman era o único que podia se gabar de ter revolucionado as letras americanas, de haver criado um novo gênero. A obra-prima a que ele se referia chama-se “A Sangue Frio” (1966), marco do jornalismo literário e ainda o mais genial “romance sem ficção” da história.

A gênese de “A Sangue Frio” é o tema central de “Capote”, belíssimo filme de Bennett Miller indicado a cinco Oscar, que estréia hoje no Brasil. Nascido em Nova Orleans, Capote (Philip Seymour Hoffman, favorito ao prêmio de melhor ator) já era uma celebridade literária na Nova York de 1959 quando leu no jornal “The New York Times” uma pequena nota sobre o misterioso assassinato de quatro membros de uma família de fazendeiros na pequena cidade de Holcomb, no estado de Kansas.

Apesar de o assunto parecer o mais distante possível de seu cotidiano hedonista na época (ou, talvez, por isso mesmo), ele acreditou que a história poderia render uma reportagem ou um livro e partiu para a cidade ao lado da também escritora Harper Lee (Catherine Keener), autora de “To Kill a Mockingbird”. Homossexual de voz fina e cheio de trejeitos, ele era uma figura extravagante para uma pequena comunidade do sul dos Estados Unidos, mas conseguiu conquistar a confiança dos moradores com sua habilidade para criar empatia a partir do nada. Mas ele só entendeu por que tinha ido parar em Holcomb quando a polícia prendeu os dois autores confessos do crime.
O filme centra-se na estranha amizade que se estabeleceu entre o escritor e Perry Smith (Clifton Collins Jr.), o mais introvertido e inteligente dos assassinos. Capote afeiçoou-se de tal forma a ele que pagou um advogado para revogar a condenação à pena de morte (e também conseguir mais tempo para ouvir as confissões de Perry). Mas, com o passar dos anos, passou a desejar sua execução, para poder concluir o livro. Os dois estabeleceram uma associação que pode ser chamada de simbiótica, pois ambos os lados se beneficiaram dela: o escritor precisava do criminoso para conseguir sua história, o criminoso precisava do escritor para permanecer vivo.

A relação entre Capote e Perry foi uma das mais complexas e ambíguas já estabelecidas entre um artista e seu modelo na história. Ele comportava emoções paroxísticas de cumplicidade autência, manipulação mental e desejo físico (segundo as más línguas, eles se tornaram amantes). “Capote” tem o grande mérito de captar todas as nuances dessa insólita associação sem se fixar em nenhuma delas, sem tentar definir o indefinível. Assim, tornou-se um dos melhores filmes já feitos sobre os jogos de atração e repulsa entre um autor e seu tema. Para tanto, contou com a ajuda fundamental de Hoffman, que encontra a alma do personagem por baixo de várias camadas de tiques.

A chave para elucidar a relação entre Capote e Perry está em uma frase dita pelo escritor a sua colega Harper Lee: “É como se nós tivéssemos crescido na mesma casa, só que eu saí pela porta da frente, e ele pela de trás”. O filme consegue mostrar que a distância que separava os mundos do escritor refinado e do assassino brutal era apenas aparente. Havia muito mais elementos a unir os dois do que a separá-los: ambos cresceram em lares desestruturados de regiões pobres dos EUA, foram ridicularizados na adolescência por sua baixa estatura, desenvolveram uma ambígua forma de sexualidade, vingaram-se do mundo pela arte ou pela violência. Talvez o grande achado do filme seja revelar que “A Sangue Frio” não foi apenas uma revolução na literatura, mas também a autobiografia dissimulada de Truman Capote.