sábado, junho 24, 2006

Há 100 anos nascia Billy Wilder, um grande mestre da ironia (por Paulo Vasconcellos)


Se me perguntassem até quantos anos eu gostaria de viver, responderia de bate-pronto: "até onde minha mente preservasse a lucidez". Já que com a natural e cruel desaceleração do metabolismo, muito do que me faz a vida interessante hoje, cederá, um dia, à inevitável decadência física na trajetória que me resta. Só por esse motivo já valorizo tanto o passado. O passado que todos nós vivenciamos através dos prazeres do corpo e da mente, do ócio e das realizações pessoais. Seguramente, se de lembranças viveremos, é porque o passado é presente e futuro também. Todos girando simultaneamente a despeito da cronologia, e dentro do que nosso pseudo entendimento chamaria de consciência. Paralelamente, a longevidade ativa de outrem nos reforça a sensação de que também podemos alcança-la. Fazendo-nos assim, menos ansiosos em "aproveitar" todo e qualquer minuto disponível, no vislumbre de uma velhice inerte e redentora. Foi assim que me senti confortado, ao deparar minha juventude com a energia de um nonagenário e sarcástico velhinho, que, vez por outra, dava o ar de sua graça em entrevistas e aparições na TV. Seu nome, Billy Wilder. Diretor e roteirista de cinema, autor de obras-primas como "Pacto de Sangue", "Farrapo Humano", "Crepúsculo dos Deuses", "A Montanha dos Sete Abutres", "O Pecado Mora ao Lado", "Testemunha de Acusação", "Quando Mais Quente Melhor" e "Se Meu Apartamento Falasse", entre tantas outras. Ou simplesmente Samuel Wilder, nascido em Sucha, parte do então império austro-húngaro em 1906, e morto dia 28 de março de 2002, aos 95 anos de idade em sua casa em Bervely Hills, vitimado por pneumonia. Morreu diferentemente do que desejava: "Aos 104 anos, gozando de boa saúde, alvejado por um tiro dado por um marido que me encontrasse trepando com a mulher dele".

Filho de um hoteleiro, ele mesmo dizia que o sonho de seus pais era o típico sonho de uma família pequeno-burguesa, abençoada com dois filhos, dentre os quais, um deveria ser médico, outro advogado. Para felicidade do resto do mundo, isso não ocorreu. Decidido não mais depender financeiramente do pai, encantou-se com a imagem de jovens americanos trajando capas Burberry, com um cartão escrito "imprensa" na aba do chapéu, entrevistando celebridades. "Era isso que eu queria ser", dizia: repórter. Assim, aos trancos, Wilder fez incursão pelo jornalismo vienense no início dos anos 20. Nesta época , participar do insólito mundo das redações, forjava no espírito e na mente, subsídios suficientes para despertar genialidades multifacetadas. Gente que, mais tarde, se tornaria muitas das maiores cabeças do teatro, rádio, cinema, e literatura, na primeira metade do século XX. Chega a ser escalado para entrevistar Richard Strauss e até mesmo Sigmund Freud. Este último, ao recebe-lo, perguntou: "O Senhor é repórter?" "Jawohl, Herr Professor!", respondeu Wilder. Freud fez um gesto com a mão e disse: "A saída é por ali." Ainda assim, Wilder confessou anos depois que sua "expulsão", foi uma glória maior do que ter sido convidado de honra num jantar de gala promovido por Kadhafi.

Em 1926, abandona o emprego de repórter em Viena e parte para Berlim. Já com inspirações a roteirista de cinema. Deseja escrever filmes no estilo de seu ídolo confesso, o diretor alemão Ernst Lubitsch. Tão óbvio quanto obtuso, deu várias vezes com a cara na porta. Enquanto isso, pra encher a barriga pelo bolso, aos 20 anos, emprega-se como dançarino num elegante hotel chamado Eden , na Budapesterstrasse. Incomodado com o estigma da profissão, desiste em apenas dois meses. Mas a história já preparava seus revezes. Três anos depois, em 1929, ainda em Berlim, escreve seu primeiro roteiro para um filme mudo chamado "Der Teufelsreporter". Em 1930 roteiriza "Menschen am Sonntag (Gente de Domingo)" filme dirigido por Robert Siodmak e Edgar Ulmer, e que tem como assistente de câmera Fred Zinnemann. Todos, nomes posteriormente aclamados no cinema americano. Considera-se este, o primeiro filme realista alemão. Trabalha na UFA (Universum Film Aktiengesellschaft), principal estúdio cinematográfico alemão, até 1933 quando decide deixar o país já sob a sombra do nazismo. Em sua biografia " O Resto é Loucura"(1992) de Hellmuth Karasek, editora DBA, Wilder conta que naquele mesmo ano, no UFA-palast (cinema do estúdio), numa pré-estréia, ele estava sentado à poucas fileiras de Hitler, e portanto, poderia tê-lo alvejado. "De qualquer modo você não atirou nele", retrucou o biógrafo. "Nem quase", respondeu Wilder. "Faltavam-me duas coisas: coragem e um revólver."

Como tantos, Wilder, de origem judaica, ruma para os Estados Unidos, e durante a trajetória dá uma "paradinha" em Paris onde dirige pela primeira vez. "Mauvaise Graine"(1934), filme que tem o roteiro baseado num argumento do próprio. Em 1934, pelas mãos do produtor Joe May, recebe uma passagem de ida para Hollywood, um contrato de seis meses e 150 dólares semanais. Só depois é que a Columbia descobriu que sua mais recente aquisição mal falava inglês. Neste período, 1935, Wilder alojava-se num vestíbulo de mulheres no porão do Château Marmont. Tudo que tinha era uma cama de armar e um prato de sopa. Dizia que este foi o ponto mais baixo em que chegou na vida. Tempos depois arrumou emprego na Paramount, recebendo 250 dólares semanais. Foi escalado por Manny Wolfe, então chefe da seção de 104 roteiristas do estúdio, para trabalhar ao lado de Charles Brackett. Brackett, um rico nova-iorquino diplomado em Ciências Jurídicas por Harvard, contrapunha-se em muitos sentidos à Wilder. "Já" morava em Bervely Hills num apartamento que dava para Sunset Boulevard, decorado com uma infinidade de quadros retratando ovelhas. Muitos apostariam num rompimento na primeira linha escrita à quatro mãos. Mas como em Hollywood todos os sonhos são possíveis, o que era para ser um pesadelo de discórdias, transformara-se na mais afinada dupla de roteiristas do estúdio.

Assim, finalmente Wilder/Brackett escrevem para Ernst Lubitsch que dirigiu "A Oitava Esposa do Barba Azul" (1938), com Gary Cooper e Claudette Colbert. Comédia romântica pontuada pelo Lubitsch Touch, e pelos espirituosos diálogos de Wilder. Em seguida veio "Meia-noite"(1939) , dirigido por Mitchell Leisen, também, com Colbert e Don Ameche. Filme menos festejado, que não perde em nada para " A Oitava ...". No mesmo ano surge "Ninotchka", novamente de Lubitsch, fazendo Greta Garbo rir à vontade ( e pela primeira vez no cinema), encarnando uma burocrata soviética que se entrega ao hedonismo parisiense. Uma crítica sarcástica ao bolchevismo. Diálogos memoráveis, para um filme que flutua sob a leveza das mãos do seu diretor. Talvez este seja mesmo o melhor roteiro escrito por Wilder para outros diretores. Apesar das excentricidades conflitantes, Wilder/Brackett, trabalharam juntos de 1938 à 1950, quando, segundo Brackett, ressentido, afirmava que o rompimento partiu de Wilder. Na verdade, antes disso houve um hiato quando Brackett se recusou a trabalhar no projeto de "Pacto de Sangue"(1944), por achar a história original ruim. O desligamento final ocorreu com "Crepúsculo dos Deuses" (1950). Nesse período fértil da dupla, nasceram grandes roteiros para um total de 13 filmes.
Em "A Incrível Suzana" (1942) seu primeiro filme como diretor em Hollywood , Wilder já acerta a mão fazendo Ginger Rogers se passar por uma garotinha, por não poder pagar uma passagem de trem. Hilária a seqüência, onde, num baile, todas as garotas usam o "penteado" Veronica Lake. "Cinco Covas no Egito" (1943) o segundo filme dirigido por ele, tem como cenário a batalha em El-Alamein, entre os ingleses e os Deutsches Afrika Korps do marechal-de-campo Erwin Rommel , aqui caricato na pele de ninguém menos que Erich Von Stroheim. Particularmente é o que não me agrada muito no filme. A figura de Rommel funciona muito mais na ambigüidade encenada por James Mason em "A Raposa do Deserto "(1951), de Henry Hathaway, do que na caricatura experimentada por Wilder. Entretanto, só após o término da Segunda Guerra é que o resto do mundo pôde conhecer um pouco mais sobre as verdades e mentiras a respeito do emblemático marechal. James Mason repetiria o papel em "Ratos do Deserto" (1953) de Robert Wise.

"Pacto de Sangue"(1944), um exemplo clássico e, por que não didático, do film noir, consagra a versatilidade de Wilder. A história narra o envolvimento de um corretor de seguros (Fred MacMurray) com a esposa (Barbara Stanwyck) de um cliente, que inebriados pelo sexo e pela ganância , planejam o assassinato do marido. Barbara Stanwyck receou interpretar uma assassina depois de tantos anos como heroína. Quando disse isso a Wilder, ele indagou: "A senhora é uma ratazana ou uma atriz?". Ela respondeu: "Uma atriz, eu espero!" Aceitou o desafio. Para o papel masculino, Alan Ladd recusou. George Raft, que na vida real tinha proximidade com a máfia , ostentando uma amizade com Benjamim "Bugsy" Siegel, preocupava-se em evitar papéis de criminosos, por isso também não se interessou. Pouco tempo depois, mesmo sob alguma hesitação, Fred MacMurray enfim aceita. Todos os nutrientes do gênero noir estão presentes neste filme: crime, perversidade, louras fatais, o anti-herói, cobiça, e é claro, a traição. Partindo do original de James M. Cain, Wilder desejava escrever o roteiro com o próprio, mas este estava sob contrato com a Fox. Foi então que o produtor de Wilder na Paramount, Joe Sistron, sugeriu o escritor Raymond Chandler. Wilder não o conhecia, mas depois de ler The Big Sleep (filmado posteriormente em 1946 por Howard Hawks, e com o título no Brasil "À Beira do Abismo"), topou a parada. Mais uma vez Wilder depara-se com um escritor de temperamento completamente diferente do seu. Depois de vários desentendimentos e reconciliações, finalizam o roteiro juntos. Com sete indicações ao Oscar, "Pacto de Sangue", não levou nenhum. O próprio Wilder sabia que a Paramount havia feito campanha para o edulcorado "O Bom Pastor"(1944), de Leo McCarey, mas tinha esperança de arrebatar o prêmio de melhor diretor. Quando o nome de McCarey foi anunciado, e este partiu em direção ao palco, Wilder não se conteve e esticou o pé para um notório tropeço do colega. Foi a partir de "Pacto de Sangue", que Wilder passou realmente a gozar como diretor, do mesmo status que já mantinha como roteirista. Por esse motivo obteve mais liberdade para suas produções futuras. Assim nasce a idéia de adaptar um romance de Charles Jackson para seu próximo filme.

"Farrapo Humano" (1945), com Ray Milland e Jane Wyman, traz-nos de volta a dupla Wilder/Brackett no roteiro. Com um tema polêmico para época, Wilder nos conduz à degradante trajetória de um alcoólatra. Como sugere o título original "The Lost Weekend", a narrativa cobre um fim-de-semana na vida de um pretenso escritor, e sua derradeira tentativa de abandonar o vício. O tema, embora a princípio deprimente, fazia parte do cotidiano da maioria das pessoas. O próprio Wilder acompanhou de perto as dificuldades de convivência com um bebedor compulsivo, no caso, Raymond Chandler. Já a experiência vivida por Brackett foi ainda pior. Não bastasse ser uma espécie de babá de ébrios do naipe de F. Scott Fitzgerald, Doroty Parker e Dashiell Hammett, ainda teve como drama familiar, a esposa e filha entregues ao alcoolismo. A filha viria a sofrer um acidente fatal ao cair de uma escada durante uma bebedeira. Wilder apostou todas as fichas ao adotar uma narrativa o mais realista possível. Colocou Milland literalmente vagando pelas ruas de Nova York, tentando conseguir dinheiro para mais um drinque. Filmou a seqüência com uma câmera escondida num caminhão de padaria. Pela primeira vez no cinema se retrata os horrores ocasionados pelo delirium tremens, cena onde Milland vê um morcego imaginário rondando sua cabeça, e que termina por sugar um rato na parede. O realismo objetivado por Wilder, rendeu a Ray Milland um desconforto considerável. Parte do público passou a acreditar que o ator realmente era um bêbado compulsivo. Foi até realizada uma campanha publicitária para apagar a imagem negativa deixada pelo personagem. Penso até que o filme "Na Voragem do Vício", (1952) de George Stevens, com Joan Fontaine e Milland protagonizando um alcoólatra recuperado, também teria servido ao mesmo propósito. Frank Costello, notório gangster parceiro de Bugsy Siegel, Charlie "Lucky" Luciano e Meyer Lansky, e também representante da indústria de bebidas, teria oferecido à Paramount 3 milhões de dólares pelo negativo do filme, só para poder queimá-lo. O estúdio, receoso de criar um precedente perigoso, ordenou a distribuição no outono de 1945, e "Farrapo Humano" deu à Wilder seu primeiro Oscar como diretor. Além de ser premiado também como melhor filme (produtor, Brackett), roteiro (Wilder/Brackett) e ator (Ray Milland). Curiosamente, 1945 também foi o ano do primeiro e mais notório filme sobre o mesmo tema produzido no Brasil. Trata-se de "O Ébrio", com o popular cantor Vicente Celestino, dirigido por sua esposa Gilda de Abreu e produzido pela Cinédia de Adhemar Gonzaga.Inovador e destemido, Wilder detém a marca do flashback mais mórbido da história do cinema. Isto porque em "Crepúsculo dos Deuses"(1950), inicia o filme com a narração em off, feita por um morto. Quem conhece "Memórias Póstumas de Brás Cubas", sabe que Machado de Assis também utilizara da boca de um morto para narrar sua história, mas no cinema isto era inédito. E duvido muito que Wilder conhecesse a fabulosa obra do escritor brasileiro. A idéia inicial era começar com a primeira imagem mostrando uma morgue (filmado no necrotério de Los Angeles, entre cadáveres de verdade), e os defuntos conversando entre si. Originalmente, foi exibido com este prólogo nas chamadas sessões preview, mas como provocou gargalhadas (não se sabe ao certo, se, por acharem engraçado ou de nervoso mesmo), Wilder decidiu colocar o cadáver falante boiando numa piscina. Assim começa "Crepúsculo dos Deuses" (Sunset Boulevard), o mais cultuado filme sobre as entranhas do universo hollywoodiano. Norma Desmond (Gloria Swanson) uma atriz do cinema mudo, inativa desde o advento do som na indústria cinematográfica, vive reclusa numa sombria mansão localizada na famosa avenida que dá nome ao filme. Em meio lembranças de quando fora uma grande estrela, Desmond tripudia o subserviente mordomo Max (Erich von Stronheim), o qual já foi um dia seu diretor e marido. Surge em cena o ambicioso jovem roteirista Joe Gillis (William Holden), que acaba por se tornar seu amante e co-escritor de um roteiro planejado por Desmond para uma volta triunfal às telas. A partir daí, desnuda-se todas idiossincrasias da fauna e flora hollywoodiana, desde os losers até os winners, passando pelos esquecidos das duas espécies. É um filme enxuto e providencial. Em nenhum momento cai nas armadilhas do caricato e do piegas. Nos transpõe aos bastidores do mundo dos sonhos, revelando a nós suas mazelas, neuroses, amoralidades e desilusões. Num dado momento, Wilder nos apresenta o cotidiano da mansão de Norma Desmond. Um enfadonho jogo de cartas, cujos jogadores mais parecem múmias desenterradas de um reinado longínquo. Estão sentados à mesa do bridge, estrelas do cinema mudo como Buster Keaton, Anna Q. Nilson e H.B. Warner que representam ali, figuras vagando num sem espaço nem tempo. Mas nenhum fotograma no universo de Wilder pode beirar o marasmo. Por trás da persona pantomímica de Norma Desmond, está latente a amargura de que nada será novamente como nos "anos de ouro". Outro "gênio maldito", Erich von Stronheim, também diretor, colaborou com algumas idéias para o filme. Na pele do ex-marido de Desmond, ele sugere à Wilder que o personagem escreva falsas cartas de fãs, para manter elevada a autoestima da decadente estrela. Para se ter uma idéia do quanto insólito havia sido Stronheim como realizador, este também sugere uma outra cena em que ele estaria dedicadamente lavando as calcinhas da atriz.

Esta última só não foi inserida no filme porque Wilder, mesmo sendo Wilder, achava que já tinha problemas demais com a censura àquela altura. Desmond cultiva o hábito de assistir, numa sala cinema em casa, aos seus antigos filmes mudos, e durante uma dessas exibições, o jovem amante ao seu lado diz: "A senhora foi grande". Prontamente ela responde com um quê parafrênico: " Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos". " Não precisávamos de diálogo. Tínhamos rostos". Dá pra imaginar porque Greta Garbo não quis que a vissem envelhecer na tela, ou mesmo fora dela. É disso que se trata esse filme. Quem sobe e quem desce as colinas de Hollywood. E claro, dos íngremes e tortuosos caminhos que os levam para frente, para trás, para o topo, e para o fundo, neste caso, de uma piscina. E ninguém melhor que Wilder para desembainhar a mordacidade necessária para narrar tais bastidores. Não só sua coragem reconhecemos quando assistimos a esse filme, mas principalmente seu ceticismo e desdenho pela indústria que lhe trouxe fama e fortuna. Não se trata de cuspir no prato em que se come, mas de dizer algo como "Conheço os podres de onde trabalho, aí estão eles para quem quiser conhece-los. E querem saber, estou pouco me lixando pra tudo isso". Wilder, nunca disse exatamente tal frase. Eu é que o vejo pensando nisso quando na estréia do filme, o poderoso da MGM, Louis B. Mayer, de punho em riste, gritou para ele : "Seu miserável! Você desgraçou a indústria que o fez e sustentou. Você deveria ser coberto de alcatrão e penas , e ser expulso de Hollywood!" Por um instante, Wilder parecia refletir, mas logo deixou seu instinto fluir com a resposta. "Foda-se!".

No embalo de seu arrojo, Wilder dirige no ano seguinte, aquele que foi o seu maior fracasso de bilheteria. Injustamente, "A Montanha dos Sete Abutres" (1951) seria execrado pelo público americano, que ainda não estava preparado para aceitar críticas à sua avidez pelo sensacionalismo barato. Fonte da qual bebe o protagonista da história, o repórter nova-iorquino Charles Tatum (Kirk Douglas). Ao transferir-se para a pequena cidade de Albuquerque no deserto do Novo México, ele se depara com a oportunidade de sua vida. Fazer-se reconhecido na profissão , cobrindo um acidente numa mina local. A histeria que emerge durante a fita, nos revela as mais claras referências sobre o comportamento do coletivo diante do infortúnio alheio. Uma obra-prima que , de certa forma, disseca a relação entre oportunistas desprovidos de escrúpulos e a grande massa que os reconhece e consente. No auge do macarthismo, o filme foi acusado de antiamericano e outras baboseiras mais. "A Montanha dos Sete Abutres" quase destruiu a Paramount, colocando Wilder em baixa.

Aproveitando-se das adversidades, como sempre faria ao longo da vida, dois anos depois Wilder encontra uma brecha para, metaforicamente, criticar a míope patriotada irrompida pela chamada "caça às bruxas" . Quem prestar atenção, vai encontrar em "Inferno nº 17" (1953), mais que um simples filme de guerra. Num campo de prisioneiros alemão, durante a Segunda Guerra, o americano J.J Sefton (William Holden) é tido pelos companheiros de alojamento como um cínico e egocêntrico traidor. Só mais tarde se reconhece nele, um sentimento verdadeiro de patriotismo. Foi mais um exercício para as mensagens críticas e sarcásticas do gênio. Holden leva o Oscar do ano de melhor ator.

Ironicamente, Wilder dirige também o mais pudico registro fílmico da máxima machista sobre o casamento, "Quem está fora quer entrar, quem está dentro quer sair". Ou, pelo menos, tirar umas férias da família, de preferência na companhia da vizinha boazuda. E de boazudas ou bundudas (tanto faz), nos anos 50 não poderia existir ícone mais representativo que Marilyn Monroe. Em contrapartida, o americano médio, pseudo retilíneo, não encontraria melhor enquadramento do que no semblante maliciosamente bonachão de Tom Ewell . Do encontro destes dois tipos nasce "O Pecado Mora ao Lado" (1955). Comédia de grande sucesso, muito menos pelos diálogos afiados costumeiros nos filmes de Wilder, e bem mais pela antológica cena em que Marilyn "se refresca" sobre o respiradouro do metrô. Imortais os movimentos do vestido subindo-lhe até sua cabeça literalmente, assim como os batimentos cardíacos do sexualmente reprimido público masculino da América. Sem falar, é claro, dos estufados peitões da moça. Na cena em que ela desce a escada vestindo uma camisola, Wilder pediu-lhe que tirasse o sutiã, pois ninguém os usava debaixo de camisolas. Marilyn perguntou: "Que sutiã?", colocando a mão do diretor sobre seu peito. "Seus seios eram um milagre de forma, firmeza e notória resistência à gravidade", comentou Wilder tempos depois.

Marlene Dietrich disse em entrevista a Peter Bogdanovich que só havia trabalhado com dois grandes diretores. Um fora Joseph Von Sternberg (seu praticamente mentor), o outro Billy Wilder, com quem filmou "A Mundana" (1948) e "Testemunha de Acusação" (1958). Este último, uma das mais célebres referências dos chamados filmes de tribunais. Mais uma vez Wilder comprova sua versatilidade rodando um filme que poderia ser um autêntico Hitchcock. O suspense, a trama, tudo conspira para que haja comparações. Mas a verdade é que o, por vezes, mórbido humor hitchcockiano, nada tem a ver com o escracho alado, típico de um libertário vienense, tal como não poderíamos aludi-lo ao ferino sarcasmo de Wilder. A maestria com que o diretor nos conduz neste filme, faz com que sempre queiramos revê-lo. Nunca cansamos dos ricos diálogos protagonizados pelo trio de ferro Dietrich, Tyrone Power e o estupendo ator Charles Laughton. Desejamos sempre confirmar o desfecho da história, mesmo que não seja mais nenhuma surpresa para nós."Quanto Mais Quente Melhor" (1959), é uma das mais cultuadas comédias do período. Wilder dizia que a escolha de Marilyn Monroe dava-se por ele entender que era um pequeno papel a ser entregue para uma grande estrela. Muitos contratempos das filmagens foram atribuídos com razão a MM, a qual já dependia de pílulas para dormir e outras tantas para se manter desperta. Conta Wilder que depois de sucessivos atrasos e desculpas infantis da atriz, num dia ela apenas disse: "Simplesmente não pude encontrar o estúdio". Tony Curtis e Jack Lemmon, que contracenaram com ela, por pouco não chegaram a um esgotamento nervoso e físico. A capacidade de concentração de MM oscilava tanto que numa determinada cena ela acertava duas páginas de diálogo, tudo de primeira. Num outro dia, chegou a repetir 65 vezes um take, no qual dizia apenas uma frase: "Where is the bourbon?". Curtis e Lemmnon que travestiam-se de mulher para fugir da perseguição de gangsters no filme, ficavam muitas vezes exaustos. Não só por terem que retocar a maquiagem dezenas de vezes, mas por esperar tanto, estando calçados de desconfortáveis sapatos com salto. Talvez por isso , como disse o próprio Wilder, Tony Curtis tenha, posteriormente, desferido contra MM um único e mortal comentário: "Beijar MM é como Beijar Adolf Hitler". Mesmo a despeito disso tudo, Wilder reconhecia que aquela indisciplinada e insegura figura que quase o levou a um colapso, era deslumbrante na tela. Muito embora, foi diretamente Wilder quem lhe garantiu a direção necessária para que esta se tornasse sua melhor atuação cômica, cuja veia, inegavelmente ela possuía. Saldo final, mais uma grande comédia.Se eu tivesse que escolher um único filme de Wilder para guardar e rever, escolheria "Se Meu Apartamento Falasse" (1960). Dizem que é, também, o preferido do próprio cineasta. Como esta obra-prima envelheceu muito bem nesses mais de 40 anos, se o ser humano não mudar (como não muda) nos próximos 100 anos, ela ainda será atual. O mestre nos traz , através deste, 125 minutos de pura narrativa tragicômica. Mais uma vez critica as fórmulas ditadas por um establishment que envolve e controla os anseios e mazelas do homem contemporâneo. Como se um anônimo fosse grifado numa foto de multidão e dissessem: "Vamos ver como vive este daqui..." Para isso, nada melhor que um, por exemplo, pequeno funcionário de uma grande companhia de seguros, C. C. "Bud" Baxter (Jack Lemmon), que divide o seu tempo e vida entre o escritório onde trabalha e o pequeno apartamento onde mora. Diante deste suposto reduzido universo, irá se desdobrar a imensidão e complexidade do indivíduo e de suas relações com uma dezena de outros "iguais". Dentro da tradição do que o americano médio chama de "sucesso", Bud Baxter, não mede esforços para agradar seus superiores, mesmo que isso lhe cause noites de frio e insônia. Não que ele trabalhe na rua durante o inverno madrugada à dentro, mas muito mais por ser solteiro e poder ceder seu apartamento para encontros sexuais ocultos. Em meio este movimento todo, entra em cena a ascensorista Fran Kubelik (Shirley MacLaine, uma gracinha na época), que poderá mudar a vida do solitário Bud, e por conseqüência o calendário dos galãs de alcova. O roteiro enxuto de Wilder e seu parceiro de longa data I. A. L.(Izzy) Diamond, teria sido inspirado num escândalo de Hollywood. O do agente de Joan Bennett que emprestava um apartamento de um modesto e solteiro empregado da agência para se encontrar com ela. O marido descobriu e matou o amante. Isso, por si só, já seria tragicômico suficiente para as habilidades trocistas do gênio, mas ele nos oferece muito mais que isso. Coloca o apartamento, e todas as atividades que lá ocorrem, como pano de fundo para desnudar seus personagens muito além da avidez sexual.

Jack Lemmon está soberbo nesta fita, MacLaine comprova seu talento e até Fred MacMurray faz de sua canastrice subsídio adequado para o amoral chefe de Baxter. A canção tema também fez muito sucesso na época. Arrebatou 5 prêmios Oscar: filme, diretor, roteiro original, direção de arte em preto e branco e montagem. Esta obra-mestra do gênero, é mesmo um ícone incontestável da crítica social fílmica. Tanto é verdade que Wilder foi convidado para uma palestra em Berlim Oriental para falar sobre a obra, no auge da Guerra Fria. Foi elogiadíssimo por ter desmascarado o mundo capitalista onde todos se vendem. Wilder disse que o que se passa no filme, poderia acontecer em qualquer lugar do mundo como Tóquio, Paris e Londres. Só não poderia acontecer numa cidade: Moscou. Foi muito aplaudido. Em seguida completou a frase: "Não poderia acontecer em Moscou, mesmo porque lá o personagem central do filme, não poderia de forma alguma emprestar seu apartamento, pois existiriam mais três famílias vivendo com ele" Silêncio tumular. Este era o velho Billy Wilder. "Se Meu apartamento Falasse" é ainda melhor no que toca o coração. Num dado momento do filme Baxter (Jack Lemmon) e Fran (Shirley MacLaine) dialogam: " O espelho... está quebrado". "Eu sei. É assim que eu gosto. Assim também me vejo como me sinto".Foi difícil para o mestre superar este feito. Nos anos que se sucederam, houve lampejos de genialidade com a dupla Jack Lemmon e Walter Matthau, em fitas como " Uma Loura por um Milhão" (1966), "A Primeira Página"(1974) e o derradeiro "Amigos, Amigos, Negócios à Parte" (1981). Mas como diz o renomado crítico e fã de Wilder, Rubens Ewald Filho: "Os gênios também envelhecem". Nos anos 90 Billy Wilder externou o desejo de dirigir "A Lista de Schindler", mas Steven Spielberg preferiu faze-lo ele mesmo. Não me surpreenderia, se, na seqüência em que as prisioneiras judias se despem para o banho em Auschwitz, Wilder não poupasse nem mesmo as contemporâneas vítimas do holocausto. Ao invés da confortadora água quente, o que jorraria mesmo dos chuveiros seria o letal gás Zyclon B, reafirmando sua postura mordaz em detrimento do suspiro fácil de "Peter Spielberg Pan". Além disso, existe aquela coisa das companhias de seguro não garantirem por completo, filmes que sejam dirigidos por pessoas acima dos 75 anos. Conta besta esta, haja vista os devaneios de jovens e talentosos diretores que desafiam as leias da probabilidade no tratamento e conservação das próprias vidas. Leia-se aí, desde abuso de drogas, até viagens constantes em helicópteros.

Para os que jamais (difícil, mas não impossível) assistiram a um filme de Billy Wilder, podem conhece-lo aqui, agora, através de uma de suas mirabolantes idéias. Disse ele, uma tarde, entusiasmado, ao seu co-roteirista na época e colaborador por 24 anos , Izzy Diamond: "Escute só Izzy"... "Um cientista descobre uma fórmula que lhe permite explodir o universo. Manda tatuá-la em seu pau. Mas ela só pode ser lida quando o pau estiver ereto. Acontece que o cientista é gay. Para descobrir a fórmula a CIA treina um agente heterossexual para se passar por homossexual e excitar o cientista. Imagine Woody Allen no papel do cientista e Charles Bronson no do agente!". Como escreveu certa vez François Truffaut: "...Billy Wilder, velha raposa libidinosa...".

Por fim, minha reflexão diante da longevidade produtiva de Wilder, me convence que talvez, apenas talvez, eu possa conquistar uma lucidez plena, somente depois dos 80. Até lá, e muito depois disso, a obra desse genial mestre será vista e revista, renascendo sempre com a penúltima gargalhada.

FILMOGRAFIA DE BILLY WILDER
Mauvaise Graine (1934)
A Incrível Suzana (The Major and the Minor, 1942 )
Cinco Covas no Egito (Five Graves to Cairo, 1943)
Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944)
Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945)
A Valsa do Imperador (The Emperor Waltz, 1948)
A Mundana (A Foreign Affair, 1948)
Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950)
A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole/ The Big Carnival, 1951)
Inferno nº 17 (Stalag 17, 1953)
Sabrina (Sabrina, 1954)
O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955)
Águia Solitária (The Spirit of St. Louis, 1957)
Amor na Tarde (Love in the Afternoon,1957)
Testemunha de Acusação (Witness for the Prosecution, 1958)
Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959)
Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960)
Cupido Não Tem Bandeira (One, Two, Three, 1961)
Irma La Douce (idem, 1963)
Beija-me, Idiota (Kiss Me, Stupid, 1964)
Uma Loura por Um Milhão (The Fortune Cookie, 1966)
A Vida Íntima de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes, 1970)
Avanti... Amantes à Italiana (Avanti!, 1972)
A Primeira Página (The Front Page, 1974)
Fedora (Fedora, 1978)
Amigos, Amigos, Negócios à Parte (Buddy, Buddy,1981)

Mondo Porno - Entre o Erotismo e a Pornografia (por Danilo Corsi para Speculum)


Quando se fala de sexo como conteúdo artístico, a questão entre pornografia e erotismo vem à mente de qualquer pessoa interessada neste tipo de debate. O que seria o erotismo? O que seria a pornografia? Inúmeras respostas sempre surgem, sendo a mais comum de todas a referência direta ao explícito para rotular a pornografia. A etimologia das palavras também ajudam a criar uma pequena diferenciação. Enquanto erotismo vem de Eros e significa literalmente "desejo amoroso", a pornografia vem das prostitutas, já que a grafia portuguesa vem do grego pornographie, que significa "tratado sobre as prostitutas".

Mas esta separação etimológica parece ser mais uma maneira de aceitar a exploração sexual social do que admitir a existência de beleza e arte em algo mais explícito do que só sugerido. O artista plástico Paulo Rafael dá uma definição interessante sobre o tema em texto feito para comentar a obra do também artista plástico Gil Vicente: "O senso comum aponta diferenças entre erotismo e pornografia. Entretanto, quando se procura catalogar tais diferenças, entra-se em um campo subjetivo, pois essas fronteiras dependem do observador ou do contexto cultural e não das características intrínsecas do objeto (erótico ou pornográfico). Afinal, já foi dito que a pornografia é o erotismo dos outros. Erótico e pornográfico não podem ser diferenciados apenas com base em conceitos de explícito e implícito. Assim, em geral procuro evitar o termo erotismo, utilizando apenas o termo pornografia, ampliando seu significado. Pornografia como representação do desejo sexual, uma sexo-grafia ou uma desejo-grafia, na mesma linha de pensamento que conduz a palavras como geografia, litografia e xilografia".

Assim colocado, a pornografia é parte integrante da história da humanidade e da história da arte, onde pintura, escultura e literatura fizeram interessantes tratados artísticos tendo a pornografia como base. Esta história é praticamente impossível de rastrear com precisão. De ruínas em Pompéia às artes do paleolítico, passando pelos textos de Marquês de Sade, existem registros pornográficos em tudo o que for possível imaginar. E no cinema, o que podemos dizer como pornográfico, na acepção de Paulo Rafael, acontece desde sua invenção...

O cineasta Fernando Augusto Tiezzi afirma em um texto sobre História do Cinema: "No final do século XIX, quando surgiu o cinema, nasceu também um novo gênero que ajudaria a tornar o cinema popular: o gênero erótico. Sabe-se que, quando estava se tornando uma diversão de massa nos chamados vaudevilles, muitos filmes já traziam conotação erótica e até mesmo cenas de sexo explícito. A ausência de história, dava margem à cenas rápidas, com atores não creditados e que serviria como uso imediato, para logo depois o filme ser esquecido ou jogado fora. Como os vaudevilles eram de certa forma marginalizados, estes filmes não sofriam censura e eram exibidos normalmente."

Aos poucos, o pornográfico ganhou cada vez mais espaço. Na Europa, os filmes chegaram ao explícito com mais velocidade que os norte-americanos. Há registros de fitas explícitas de 1910. Entretanto, comercialmente, os primeiros filmes explícitos do cinema pornográfico foram produzidos em Buenos Aires, na Argentina, em 1904 e de lá exportados para o mundo todo, inclusive para os EUA. Porém, precisar a data exata do primeiro filme pornograficamente explícito é quase impossível, principalmente porque não havia uma preocupação em registrar este tipo de dado na época "Free Ride" (1915) e "On The Beach” (1916) podem ser tidos como os primeiros filmes oficiais do cinema pornô, ainda que não tenham sido lançados comercialmente nos cinemas. Eram exibidos especialmente em bordéis. Repleto de humor e cenas explícitas, os dois filmes foram produzidos por pessoas do meio cinematográfico, aplicando todas as técnicas de ponta disponíveis na época.


Nas décadas seguintes, o cinema pornográfico vivia na marginalia, sem fazer parte de um circuito comercial grande. Por incrível que pareça, foi também um período de fertilidade criativa de autores, que tinham todo um campo aberto para explorar cenas explícitas com outras suaves para criar trabalhos de forte estética.

Foi no final da década de 1960 que o cinema pornográfico ganhou os cinemas. O senso comum afirma que o primeiro filme lançado foi "Mona, A Ninfa Virgem", de 1970, seguido por "Flesh Gordon". Porém, um pouco antes disto, cineastas europeus, em especial os italianos como Tinto Brass e até mesmo o gênio Pier Paolo Pasolini, já investiam no explícito como parte integrante da narrativa.

A chegada dos filmes pornográficos aos cinemas criou novas ondas na indústria e uma nova maneira de encarar a maneira de produzi-los. Se antes quase não havia preocupação com qualquer tipo de enredo, os novos filmes agora necessitam do absurdo para criar uma linha narrativa. Foi também quando surgiram os famosos "cumshots" (cenas de ejaculação) para finalizar a cena, padrão este que continua como um dos mandamentos do estilo.

Eram os momentos de expansão e definição de dogmas e clichês. Anal, orgias, gang bang, dupla penetração, os chamados faciais, gape e a importação do bukkake (de origem japonesa) dominaram a maneira de narrar a história. Filmes como "Garganta Profunda" e "Emmanuelle" formam a Bíblia do gênero atual. Junto com isto, Europa - com seu "Le Ore", da Itália, e Japão com seu "Joshikosei" (garota de escolha) em cenas que simulavam um snuff movie - também investiram pesado em suas produções, quebrando barreiras e reinventado o jeito de fazer cinema. Não à toa, muito do cinema independente norte-americano da década de 80 incorporou algumas idéias surgidas no cinema pornô.

Com a invasão dos videocassetes na década de 80, os filmes pornôs ganharam os lares de todo mundo e surgiu também a constelação de astros, as atrizes como gancho da película - muito mais importante que diretores e enredo. Isto mudou na década de 90, com as grifes tomando conta do mercado e se tornando referência, como a Buttman. Atualmente, com o mercado forte e rentável, os gêneros se firmaram. Há os filmes de alto orçamento, geralmente com atrizes famosas e com enredo, e os amadores, onde a idéia é justamente não parecer em nada profissional e que fazem sempre relações teoricamente proibidas (médico e enfermeira, pai e babá, etc.). Há também os chamados softcores, que não mostram genitálias e nem cenas explícitas. Outra regra imutável são as inúmeras seqüências de filmes, que chegam até a ter quarenta ou cinqüenta continuações.

Independente de seu status industrial, o cinema pornográfico é capaz de produzir interessantes pérolas cinematográficas, em geral por sua ousadia ou falta de medo em transgredir. Diretores, em incansável busca de diferenciação, são capazes das mais espetaculares mudanças radicais de narrativa ou até mesmo no uso da fotografia, já que o conteúdo, em si, raramente foge de seu objetivo máximo: entreter os espectadores e excitá-los. Neste aspecto, o estilo "baseado no real" surgiu e foi amadurecido em obras pornográficas, assim como também o uso diferenciado de cores para dar contornos narrativos às ações. Como praticamente vale tudo, o cinema pornográfico não hesita em arriscar. E, em arte, o risco quase sempre é um fator crucial.

Este aspecto transgressor nem sempre é encontrado, já que a massiva produção impede a existência de tempo para uma produção um pouco mais detalhada, como era comum na década de 1970. Junta-se a isto o regime exploratório da indústria, que consome suas atrizes e atores ao máximo, em não poucos casos, quase de maneira criminosa. Mesmo assim, o cinema pornográfico permite, ao brincar com a libido, momentos de sublimação artística na formação da arte seqüencial em movimento. É a maneira de fazer cinema que não aceita covardias. Algo que, atualmente, parece ser a regra de muitos gêneros do cinema.

sexta-feira, junho 16, 2006

MR. SKIN Exposed (by Chris Gore for Filmthreat)

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John Ford, meet John Wayne (by Robert Lloyd for The Los Angeles Times)

The PBS series "American Masters" begins its 20th anniversary season tonight with "John Ford/John Wayne: The Filmmaker and the Legend," an engaging dual critical biography of the director and the actor whose names are as tightly linked as any in moviedom. Ford, called "Pappy," and Wayne, known as "Duke," made more than a dozen films together, most of them westerns, including "Stagecoach," "Fort Apache" and "The Searchers," that are among the best films Hollywood ever produced, transcending genre to become something deep and complex and unpredictable.

As masters go, you can't get any more obviously American than Ford (born Feeney) or Wayne (born Marion Morrison), who after the eagle, the flag and those heads up on Mt. Rushmore is possibly the next closest thing we have to a national symbol. (For good and for ill.) But, as this film relates, they were quite different men in outlook and politics, whose Americanism took radically different shape (until late in Ford's life, when Vietnam War protests turned him increasingly conservative).

Directed by Sam Pollard (longtime Spike Lee editor) and written by Kenneth Bowser ("Easy Riders/Raging Bulls"), the film isn't a complete examination of the work or life of either man but a look at what each brought out in the other across the course of their long and often spiky friendship and films together. The emphasis falls slightly more on Ford, who made the frame that made sense of Wayne — in that first look at him in "Stagecoach," as the camera rushes up to meet him, a star is born — and was in fact the larger, more troublesome and demanding personality. (Wayne, by all accounts, at least by all accounts here, was a generous, gregarious and exceptionally good-tempered man.)

At the same time, it's Wayne you want to look at. For all his famous "manliness" — of which talking head John Milius speaks approvingly, though Martin Scorsese wonders more trenchantly what that actually means, "to be a man" — there is a softness to him that takes the edge off him and gives even the most unlikable of his characters a human edge. (Ford too was reputed to be deeply sensitive beneath his hard-to-penetrate exterior and autocratic distancing strategies.) Commentators consistently speak of Wayne's beauty and grace; critic Richard Schickel calls him "absolutely gorgeous," and this is borne out by some striking pictures of the actor in his youth.

Along with Scorsese and Milius, there are comments from directors Peter Bogdanovich and Mark Rydell (who directed Wayne in "The Cowboys"); three Ford biographers; critics Schickel and David Thomson; various surviving members of the "Ford Stock Company" that the director carried from picture to picture; and descendants of Ford and Wayne. Each has lived with these films until they are like family.

The prints of Ford's films as excerpted here are all pristine and striking; even when they lack narrative context, the pictures have a strong emotional effect and make you want to sink yourself into the body of work for a week or a month or a year.

'The Searchers': How the Western Was Begun (by A. O. Scott for The New York Times)

In the last shot of "The Searchers," the camera, from deep inside the cozy recesses of a frontier homestead, peers out though an open doorway into the bright sunshine. The contrast between the dim interior and the daylight outside creates a second frame within the wide expanse of the screen. Inside that smaller space, the desert glare highlights the shape and darkens the features of the man who lingers just beyond the threshold. Everyone else has come inside: the other surviving characters, who have endured grief, violence, the loss of kin and the agony of waiting, and also, implicitly, the audience, which has anxiously anticipated this homecoming. But the hero, whose ruthlessness and obstinacy have made it possible, is excluded, and our last glimpse of him emphasizes his solitude, his separateness, his alienation — from his friends and family, and also from us.

Even if you are watching "The Searchers" for the first time — perhaps on the beautiful new DVD that Warner Home Video has just released to mark the film's 50th anniversary — this final shot may look familiar. For one thing, it deliberately replicates the first image you see after the opening titles — a view of a nearly identical vista from a very similar perspective. Indeed, the frame-within-the-frame created by shooting through relative darkness into a sliver of intense natural light is a notable motif in this movie, and elsewhere in the work of its director, John Ford. Especially in his westerns, Ford loved to create bustling, busy interiors full of life and feeling, and he was equally fond of positioning human figures, alone or in small, vulnerable groups, against vast, obliterating landscapes. Shooting from the indoors out is his way of yoking together these two realms of experience — the domestic and the wild, the social and the natural — and also of acknowledging the almost metaphysical gap between them, the threshold that cannot be crossed.

But that image of John Wayne's shadow in the doorway — he plays the solitary hero, Ethan Edwards — does not just pick up on other such moments in "The Searchers." Perhaps because the shot is thematically rich as well as visually arresting — because it so perfectly unites showing and telling — it has become a touchstone, promiscuously quoted, consciously or not, by filmmakers whose debt to Ford might not be otherwise apparent. Ernest Hemingway once said that all of American literature could be traced back to one book, Mark Twain's "Huckleberry Finn," and something similar might be said of American cinema and "The Searchers." It has become one of those movies that you see, in part, through the movies that came after it and that show traces of its influence. "Apocalypse Now," "Punch-Drunk Love," "Kill Bill," "Brokeback Mountain": those were the titles that flickered in my consciousness in the final seconds of a recent screening in Cannes of Ford's masterwork, all because, at crucial moments, they seem to pay homage to that single, signature shot.

At the end of "Brokeback Mountain," for instance, we are inside Ennis Del Mar's trailer, looking out the window onto the Wyoming rangeland, from a domestic space into the wilderness, as in "The Searchers." But in this case, the interior, rather than a warm, buzzing home, is barren, the scene of Ennis's desolation. The outside, insofar as it recalls the mountain where he and Jack Twist spent their youthful summer of love together, is an unattainable place of freedom and companionship, rather than a zone of danger and loneliness as it was in the earlier film. Ennis is severed from those he loves, and from his own nature, by the strictures of civilization, while Ethan's violent nature renders him an exile from civilized life, condemned to wander on the margins of law, stability and order.

Of course, "Brokeback Mountain" is a western by virtue of its setting rather than its themes, which recall the forbidden-love mid-1950's melodramas of Douglas Sirk more than anything Ford was doing at the time. But just about any movie that ventures into the territory of the western — and a great many that do not — has a way of bumping up against not only Ford's images but also his ideas.

He did not invent the genre, of course, and hardly restricted himself to it in the course of a career that began in the silent era and lasted more than 50 years. There will always be those who find the frontier visions of Budd Boetticher, Anthony Mann, Raoul Walsh and Howard Hawks more complex, more authentic or more varied than Ford's, as well as those who seek out western heroes less obvious than John Wayne. But like it or not, Wayne and Ford, whose long association is sampled in a new eight-movie boxed set and examined in a recent PBS documentary, "John Ford/John Wayne: The Filmmaker and the Legend," directed by Sam Pollard, have long since come to represent the classic, canonical idea of the American West on film.


Which is to say that their movies, however deeply revered and frequently imitated, have also been attacked, mocked, dismissed and misunderstood. If, from the late 1930's to the early 1960's, they defined the classic western — a tableau involving marauding Indians, fearless gunslingers, ruthless outlaws and the occasional high-spirited gal in a calico dress — they also begat the countertendency that came to be known as the revisionist western, with its nihilism, its brutality and its harsh demystification of the threadbare legends of the old West. Thus, after Sam Peckinpah and Sergio Leone, after "McCabe and Mrs. Miller" and "Unforgiven," after "Dead Man" and "Deadwood," the brightly colored black-and-white world of "The Searchers" might look quaint, simplistic and not a little retrograde.

It certainly looked that way at Bennington College in 1982, when the novelist Jonathan Lethem saw the film for the first time. He recalls the laughter of his fellow undergraduates in an essay called "Defending 'The Searchers,' " which also recalls his own earnest intellectual obsession with the film. His first attempt to appreciate it ends in defeat — " 'The Searchers' was only a camp opportunity after all. I was a fool" — but he keeps returning to contend with the sneers and shrugs of academic and bohemian friends and acquaintances, who can't see what he's so excited about. "Come on, Jonathan," one of them says, "it's a Hollywood western."

So it is, which means that it's open to the usual accusations of racism, sentimentality and wishful thinking. David Thomson, in his "Biographical Dictionary of Film," tips his hat to "The Searchers," but only in the midst of a thorough ideological demolition of its director, whose "male chauvinism believes in uniforms, drunken candor, fresh-faced little women (though never sexuality), a gallery of supporting players bristling with tedious eccentricity and the elevation of these random prejudices into a near-political attitude." The idea that Ford is an apologist for violence and a falsifier of history, as Mr. Thomson insists, dovetails with a longstanding liberal suspicion (articulated most fully by Garry Wills in his book "John Wayne's America") of Wayne, one of Hollywood's most outspoken conservatives for most of his career. And of course, the presumed attitudes that make Wayne and Ford anathema at one end of the spectrum turn them into heroes at the other.

But as the PBS documentary makes clear, the two men did not always march in political lockstep. And in any case, the closer you look at the movies themselves, the less comfortably they fit within any neat political scheme. Even the portrayal of Indian and Mexican characters, once you get past the accents and the face paint, cannot quite be reduced to caricature.

And Wayne himself, from his star-making entrance as the Ringo Kid in "Stagecoach" (1939) to his valedictory performance in "The Man Who Shot Liberty Valance" (1962), his last western with Ford, is hardly the simple personification of manly virtue his critics disdain and his admirers long for. Even when he drifts toward playing a John Wayne type rather than a fully formed character, there is enough unacknowledged sorrow in his broad features, and enough uncontrolled anger in that slow, hesitant phrasing, to make him seem dangerous, unpredictable: someone to watch. He is never quite who you think he will be.

And this is never truer than in "The Searchers," where much about Ethan's personality and personal history remains in the shadows. A former soldier in the Confederate Army, he arrives in Texas (though the film was shot in Monument Valley in Utah) three years after the end of the Civil War, with no way of accounting for the time lag apart from the angry insistence that he didn't spend it in California. Wherever he was, he acquired both a virulent hatred of Indians and an intimate understanding of their ways. When his two young nieces are kidnapped by Comanches — their parents and brothers are scalped and the farmstead burned — he sets out on a search that will last for years and that will blur the distinction between rescue and vengeance. It becomes clear toward the end that he wants to find the surviving niece (now played by Natalie Wood) so that he can kill her.

This impulse points to a terrifying, pathological conception of honor, sexual and racial, and for much of "The Searchers" Ethan's heroism is inseparable from his mania. To the horror and bafflement of his companions (one of whom is both a preacher and a Texas Ranger, and thus a perfect embodiment of civilized order), Ethan shoots out the eyes of a dead Comanche, and exults that this posthumous blinding will prevent this enemy from finding his way to paradise. But when you think about it, Ethan's ability to commit such an atrocity rests on a form of respect, since unlike the others he not only knows something about Comanche beliefs but is also willing to accept their reality. And the film, for its part (the script is by Frank S. Nugent, who was once a film critic for The New York Times before he took up screenwriting), acknowledges the reality of Ethan's prejudices and blind spots, which is not the same as sharing or condoning them.

The Indian wars of the post-Civil War era form a tragic backdrop in most of Ford's post-World War II westerns, much as the earlier conflicts between settlers and natives did in the novels of James Fenimore Cooper. That the Indians are defending their land, and enacting their own vengeance for earlier attacks, is widely acknowledged, even insisted upon. The real subject, though, is not how the West was conquered, but how — according to what codes, values and customs — it will be governed. The real battles are internal, and they turn on the character of the society being forged, in violence, by the settlers. Where, in this new society, will the frontier be drawn between vengeance and justice? Between loyalty to one's kind and the more abstract obligations of human decency? Between the rule of law and the law of the jungle? Between virtue and power? Between — to paraphrase one of Ford's best-known and most controversial formulations — truth and legend?

Ford's way of posing these questions seems more urgent — and more subtle — now than it may have at the time, precisely because his films are so overtly concerned with the kind of moral argument that is, or should be, at the center of American political discourse at a time of war and terrorism. He is concerned not as much with the conflict between good and evil as with contradictory notions of right, with the contradictory tensions that bedevil people who are, in the larger scheme, on the same side. When should we fight? How should we conduct ourselves when we must? In "Fort Apache," for example, the elaborate codes of military duty, without which the intricate and closely observed society of the isolated fort would fall apart, are exactly what lead it toward catastrophe. Wayne, as a savvy and moderate-tempered officer, has no choice but to obey his headstrong and vainglorious commander, played by Henry Fonda, who provokes an unnecessary and disastrous confrontation with the Apaches. In the end, Wayne, smiling mysteriously, tells a group of eager journalists that Fonda's character was a brave and brilliant military tactician. It's a lie, but apparently the public does not require — or can't handle — the truth.

In telling it, Wayne is writing himself out of history, which is also his fate in "The Man Who Shot Liberty Valance" (not, unfortunately, one of the discs in the Warner box). That film — which contains the famous line "When legend becomes fact, print the legend!" —throws Wayne's man of action and James Stewart's man of principle into a wary, rivalrous alliance. Their common enemy is an almost cartoonish thug played by Lee Marvin, but the real conflict is between Stewart's lawyer and Wayne's mysterious gunman, one of whom will be remembered as the man who shot Liberty Valance.

What we learn, in the course of the film's long flashbacks, is that the triumph of civilization over barbarism is founded on a necessary lie, and that underneath its polished procedures and high-minded institutions is a buried legacy of bloodshed. The idea that virtue can exist without violence is as untenable, as unrealistic, as the belief — central to the revisionist tradition, and advanced with particular fervor in HBO's "Deadwood" — that human society is defined by gradations of brutality, raw power, cynicism and greed.

If only things were that simple. But everywhere you look in Ford's world — certainly in "Fort Apache," in "The Searchers," in "The Man Who Shot Liberty Valance" — you see truth shading into lie, righteousness into brutality, high honor into blind obedience. You also see, in the boisterous emoting of the secondary characters, the society that these confused ideals and complicated heroes exist to preserve: a place where people can dance (frequently), drink (constantly), flirt (occasionally) and act silly.

And everywhere else — after Ford, beyond his movies — you find the same thing. The monomaniacal quest for vengeance, undertaken by a hero at odds with the society he is expected to protect: it's sometimes hard to think of a movie from the past 30 years, from "Taxi Driver" to "Batman Begins," that doesn't take up this theme. And the deeper question of where vengeance should stop, and how it can be distinguished from justice, surfaces in "Unforgiven" and "In the Bedroom," in "Mystic River" and "Munich."

In "Munich" the Mossad assassins spend most of the film in a limbo that Ethan Edwards would recognize, even though it takes place amid the man-made monuments of Europe rather than the wind-hewn rock formations of Monument Valley. The Israeli agents are far from home, exiled from the democratic, law-governed society in whose name they commit their acts of vengeance and pre-emption, and frighteningly close both to their enemies and to a state of pure, violent retaliatory anarchy. With more anguish, perhaps, than characters in a John Ford movie, they often find themselves arguing with one another, trying to overcome, or at least to rationalize, the contradictions of what they are doing. They appeal to various texts and traditions, but they might do better to pay attention to the television that is on in the background at one point in the movie: another frame within the frame, tuned, hardly by accident, to "The Man Who Shot Liberty Valance."

Bette Davis, No actress has filled her void since her death in 1989 (by Mary McNamara for The Los Angeles Times)


It only takes a film clip to bring it all back — those eyes, that voice, the inevitable look of amused contempt cutting through a sorcerer's haze of cigarette smoke.

During her life, Bette Davis had few peers, and almost 20 years after her death, no actress has even attempted to follow in her footsteps. Probably because the walk alone is beyond the ken of most modern starlets. Two parts what-are-you-looking-at and one part scoot-forward-you'll-get-a-better-view, that elbow-levitating, hip-swinging sashay adored by drag queens for decades distilled the fascinating contradiction of the woman.

Not that there is any one Bette Davis image. Other stars of her era may be more easily summoned to mind — Katharine Hepburn, say, or even Joan Crawford. The Davis oeuvre is more varied than most of the other strong-minded gals of her time — she did Southern belle, she did British monarch, she did New York socialite and aging starlet. The accents may have been a bit perilous, but the stubborn New England fearlessness never was.

Here was someone who would pause mid-stride to light her cigarette off a burning orphanage and, still, you had to love her.

Two recent attempts have been made to explain why. Charlotte Chandler's recent biography, "The Girl Who Walked Home Alone," which was excerpted in a recent Vanity Fair, relies much on several years' worth of interviews with the star. It's a bit like a historic tour of Davis' life with Davis, in all her deadpan staccato splendor, as tour guide. "It was said in my family," the book opens, "that one of my ancestors was a witch. Well, I certainly hope so. It would explain everything." (Davis was one of those people who spoke habitually, and effectively, in italics.)

"Stardust: The Bette Davis Story," which premieres today on Turner Classic Movies, takes a longer view. Directed by Peter Jones and narrated by Susan Sarandon, the documentary obviously originates from a place of homage. Davis, the filmmakers believe, was not only a brilliant actress but also a feminist trailblazer (hence, one supposes, the odd use of Jane Fonda, who never worked with Davis, as an interview subject).

Feminist may be a bit of a reach — one TV interview has Davis firmly announcing that it is the role of the "girl" to subsume her life to that of the man, otherwise the marriage won't work. With four failed marriages, she certainly would have known, but it didn't seem to occur to her to question these supposed requirements of marriage.

Beyond that, it is remarkably clear-eyed about its subject, who was a very complicated person, with as many obvious failings as talents. Unlike the recent TV biography of Eugene O'Neill, for instance, in which everything from the playwright's alcoholism to his abandonment of his own children was explained neatly away by his having been "haunted" by an imperfect early family life, "Stardust," like its dyed-in-the-wool Yankee subject, is much more matter-of-fact.

Davis too came from a broken home; her father, never too pleasant to begin with, abandoned his wife and two young daughters to live with his mistress. Bette's mother, Ruthie, quickly poured her considerable energy into her daughter's nascent dramatic career. When a very young Bette came down with measles after landing a plum role — Hedvig in "The Wild Duck" (the part that wakened in Bette the desire to be an actress) — Ruthie promised the director she'd have her daughter up on her feet in 10 days, and she did.

Their relationship would remain intense and symbiotic until Ruthie's death, but while Jones does lay some of Davis' subsequent trouble with men at the feet of her childhood, he is not a Davis apologist. That she was driven, ambitious, probably alcoholic, sometimes violent, always outspoken and ruthlessly certain of her own significance is not, mercifully, fodder for biopic psychoanalysis.

Instead we are shown the extraordinary career that sprung from such a personality — the woman made more than 90 films, many of them classics — as well as the life required to make that career possible. Because, as she said herself many, many times, the work was what really mattered to her.

Which is a good thing because Davis did not have a particularly happy life. Along with the four marriages, she had three children, two of them adopted. One daughter was mildly retarded and institutionalized; the other, B.D., was Davis' constant companion for years, until she wrote a tell-all book that severed their contact. Only her son, Michael Merrill, was interviewed for "Stardust," and though he speaks of his mother with a vague fondness, he is still clearly a bit shellshocked by the experience of being Bette Davis' son.

Part of this is due to the nature of the time. Davis was a movie star when being a movie star was a full-time occupation. She often made as many as three films a year; in the banner year of 1939, she made four. Her personal struggles with Jack Warner, to whom she was under contract for 18 years, were legendary — "She never had an unkind word for Jack," Frank Sinatra said at a banquet honoring Davis. "And the time she stabbed him, it was an accident. She was in his office and she reached for the revolver, the knife slipped out."

Even during the years when she was in hit after hit —she was nominated for 10 Oscars (five in consecutive years) and won two — the industry's devotion, then as now, lasted only a few minutes after the latest box office tally. When she hit her 40s, she learned, as so many actresses have, that age does matter. (It also doesn't help when you've earned a reputation for being almost impossible on the set.) Even after the sweeping success of "All About Eve," in which she played a fading star at the ripe old age of 42, leading film roles were scarce. The late '50s and early '60s were full of television work as Davis struggled to support herself, her children, her sister and her mother.

Beyond a collection of some of the best moments in American film and a mildly intimate look at a woman so well known she was almost her own caricature, what emerges from "Stardust" is the vacuum that Davis and some of her contemporaries left behind. Where is an actress alive today who could utter lines like "I'd kiss ya, but I just washed my hair" or "But you are, you are in that wheelchair, Blanche" or even the classic "What a dump." And where are the writers to write them?

Davis' list of successful films is low on romantic comedies, high on character dramas, and within them she created a series of women who may have wanted to be loved (who doesn't?) but who were also perfectly capable of letting their dream man go with a quip and a shrug if it looked as if he was going to get in the way of what she really wanted. The plot may have required Margo Channing to deliver a nice little soliloquy on the importance of being there for your man, but somehow the audience knew that Eve or no Eve, Margo wasn't going to change one whit.

Imagine an actress today building a successful career with a persona like that. Imagine a series of female-driven films in which the women were allowed to be smart and mouthy and not play second banana, or calculating and vulnerable but not punished for either? A film in which a happy ending was marked by a rueful smile and the admission that the star-crossed couple would just have to remain star-crossed?

Davis was perhaps one of the last of her kind — a Movie Star Who Wanted to Be a Movie Star, who made no apology for grabbing the roles she wanted, who worked pretty much nonstop all her life even when it meant doing "Gunsmoke" and playing creepy nannies, who didn't pretend that she was just like her fans, that she also wanted a "normal" life.

And so she remained, to the end of her life and mostly by the force of her own will, a Big Star, with the cigarette going and the false eyelashes fluttering while she uttered scathing one-liners in that perpetually heartbreaking, heartbroken voice.

Bette Davis, undiluted.

Pollack vai à alma de Frank Gehry (por Amir Labaki para o Valor)


"Começar é difícil. Você sabe que é." Sob um fundo negro, são essas as primeiras frases do arquiteto Frank Gehry para o cineasta Sydney Pollack na estréia do diretor de "Tootsie" (1982) em documentários com "Sketches of Frank Gehry", exibido fora de concurso em Cannes 2006.


O filme registra um encontro de gigantes da arte americana do pós-guerra. Gehry se tornou quase sinônimo de arquiteto a partir do revolucionário projeto para o Museu Guggenheim de Bilbao, Espanha, inaugurado em 1997. Pollack dirige grandes sucessos em Hollywood há mais de quatro décadas ("A Noite dos Desesperados", "Nosso Amor de Ontem", " Entre Dois Amores"), sempre respeitando a inteligência do público.

Gehry e Pollack eram amigos muito antes do projeto de filme. A informalidade da relação e a confiança mútua pulsam na tela. Gehry foi convidado para protagonizar um documentário por duas redes de televisão. Descartou-as, mas gostou da idéia. Convidou Pollack a assumir o projeto. O cineasta argumentou que nada entendia de arquitetura e de documentários. Decidiram filmar algumas conversas. Cinco anos depois, o resultado chega agora aos cinemas, sem data ainda para lançamento no Brasil.

Nascido Ephraim Goldberg em 1929, em Toronto, Gehry mudou-se aos 17 anos para os EUA, onde estudou em Los Angeles. Conta que mudou o nome pela experiência com certo anti-semitismo difuso. Viveu de bicos, como dirigir caminhões, até que decidiu seguir o impulso para a arquitetura gerado por uma palestra do mestre modernista finlandês Alvar Aalto (1898-1976), a que assistiu em 1946. "Meu trabalho é mais próximo do dele", reconhece para Pollack.

Inúmeros artistas, como Ed Ruscha e Dennis Hopper, e críticos, como Charles Jencks e Herbert Muschamp, depõem sobre o impacto da arquitetura de Gehry. Sua mais veemente defesa vem de um dos maiores artistas da arquitetura americana do século XX, Philip Johnson (1906-2005), falecido antes da edição do filme. Gehry, sustenta Johnson de saída, "é o mais importante arquiteto hoje".

O principal contraponto critico vem do ensaísta Hal Foster, professor em Princeton. A partir da "espetacularidade" de construções como o museu de Bilbao, que disputaria a atenção com as exposições, Foster metralha: "Não tenho certeza de que aquilo sirva à arte".

"Eu estava buscando uma forma de expressar sentimentos por meio de edificações em três dimensões", comenta Gehry sobre os desafios de sua obra mais impactante. Apenas no primeiro ano de visitação, Bilbao recebeu o dobro de seus 350 mil habitantes em turistas.

"Nunca pensei que Bilbao fosse virar o que virou", testemunha o arquiteto. Quando viu a obra pronta, lembra ter pensado: "Meu Deus, o que foi que eu fiz?"

Gehry se define como " um modernista". E assume uma frustração. "Se tenho uma grande inveja é dos pintores. Gostaria de ter sido um deles. Nunca tentei, não saberia o que fazer. Sei fazer prédios."

Numa das mais reveladoras seqüências do filme, Gehry mostra para Pollack um quadro clássico de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), "A Coroação de Espinhos", que visitou inúmeras vezes na National Gallery de Londres. Mostra então como a composição das figuras inspirou, muitos anos depois de conhecê-la, o esquete de um de seus projetos. A mera justaposição das imagens fala por enciclopédias sobre o funcionamento da cabeça de Gehry.

Pollack foi certeiro na seleção da visita de encerramento do documentário. Acompanhamos a primeira ida de Gehry para conhecer a sede do DG Bank, em Berlim, inaugurada em 2001. Entre explicações funcionais sobre a necessidade de um grande piso de vidro, Gehry afirma: "Quando a luz bate num edifício é que ele vive".

A câmera de Pollack flagra, então, um momento de rara beleza. Num gesto sutil, a mão de Gehry acaricia a parede do banco alemão. É como o afago de um pai ao filho recém-nascido. É um momento de imenso cinema, ficção ou documentário, apenas mais um na bela carreira de Sydney Pollack.

Pergunte ao Produtor (por Ricardo Calil para NoMínimo)


John Fante lançou em 1939 o livro “Pergunte ao pó”, clássico da literatura norte-americana. Robert Towne escreveu em 1974 o roteiro de “Chinatown”, obra-prima do cinema. Por 30 anos, Towne nutriu o desejo levar às telas a obra de Fante. No ano passado, ele finalmente conseguiu. A partir desta sexta-feira, o resultado poderá ser visto no Brasil. Mas o que prometia ser um casamento perfeito entre literatura e cinema revela-se uma verdadeira lição sobre como não fazer uma adaptação.

“Pergunte ao pó”, o livro, narra as desventuras de Arturo Bandini, jovem ítalo-americano que se muda para Los Angeles na década de 30 com o sonho de se tornar um escritor. Ele luta contra a fome, o preconceito e a falta de inspiração. Nesse meio tempo, apaixona-se pela garçonete mexicana Camila Lopez.Na sua primeira metade, “Pergunte ao pó”, o filme, reproduz todos esses elementos com fidelidade, mas sem inspiração. A escalação de Colin Farrell como Bandini e de Salma Hayek no papel de Camila – dois intérpretes com muito mais beleza do que talento – não melhora o panorama. Mas é na segunda metade do filme que Towne erra a mão feio. Ele reduz a história de Fante a um romance inter-racial entre um italiano e uma mexicana - algo que só pode ser visto como uma convenção hollywoodiana para agradar o grande público.

No livro de Fante, o amor de Bandini e Camila tem duas funções primordiais: destacar a necessidade da vivência pessoal para a criação literária (Bandini achava que não podia escrever sobre paixão se não vivesse uma) e sublinhar o sentimento de exclusão do personagem (que só aumenta quando ele se associa a outro ainda mais marginalizado). No filme de Towne, o caso dos dois serve apenas para derramar sobre o espectador os clichês mais baratos do melodrama.

Por meio de Bandini, seu alter ego, Fante defende a idéia romântica de que o escritor deve às vezes fazer sacrifícios para encontrar uma voz própria. Com sua adaptação, Towne propõe uma revisão cínica desse conceito, em que o artista admite fazer concessões para alcançar seus objetivos. O livro é uma elegia à independência. O filme, uma prestação de contas ao produtor.

sexta-feira, junho 02, 2006

Como Fomos Tratados pela Bíblia dos Cinéfilos (por Sérgio Augusto para o Estadao)


A Bíblia, naturalmente, é o "Cahiers du Cinéma". Ou melhor, era. O cinema e a cinefilia mudaram tanto nos últimos tempos, que nenhuma revista de cinema pode, atualmente, arvorar-se em oráculo ou sagrada escritura como nos tempos em que as únicas reais concorrentes do "Cahiers" eram a inglesa "Sight & Sound" e a também parisiense "Positif". As três, por acaso, continuam aí, vivas, ainda que acossadas, e em certos segmentos preteridas por outras de igual valor (como a americana "Film Comment") ou de perfil mais popular (como as várias versões de "Premiere"). Vivas e em contagem regressiva para um aniversário redondo: "Sight & Sound" surgiu em 1932 e "Positif" é só um ano mais nova que sua rival, o "Cahiers", que festejou seu primeiro meio século de existência.

Do primeiro "Cahiers" a gente também não esquece. O meu primeiro foi o número 98, de agosto de 1959. Na capa, um filme de Mizoguchi, "A Imperatriz Yang Kwei Fei". Encimava uma pilha de revistas na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, aonde fora pedir informações sobre uma retrospectiva do cinema francês. Vê-lo, tocá-lo e folheá-lo foi como ver, pegar e examinar o Santo Sudário, a Bíblia de Gutenberg ou o primeiro almanaque do Globo Juvenil. Tinha apenas 17 anos e só conhecia a revista de nome e renome. Acabaria me tornando seu assinante e fidelíssimo leitor, inclusive retrospectivo, já que aos poucos consegui adquirir quase todas as edições anteriores.

Nunca fui um admirador incondicional de seus críticos. Muito aprendi e me deliciei com os artigos de François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer e Jacques Rivette (ninguém da redação via mais filmes do que ele), mas os meus favoritos, na primeira fase (1951-1964), foram, mesmo, André Bazin, Jean Domarchi, Jean Douchet e André S. Labarthe. Domarchi era um marxista sui generis, que adorava Murnau e Vincente Minnelli, ecletismo que na certa dava engulhos ao stalinista Georges Sadoul, comuna jurássico, o único a não conceder a nota máxima para "Cidadão Kane" no legendário Conseil des Dix, o quadro de cotações da revista. Sadoul era uma anomalia na revista: um crítico sectário politicamente, cercado de "jovens turcos" apolíticos ou, no máximo, vagamente anarquistas, como Godard.

Inspiração de tantos outros quadros de cotações pelo mundo afora, o Conseil des Dix teve seus primeiros sucedâneos brasileiros na excelente "Revista de Cinema", de Belo Horizonte, e no jornal carioca "Correio da Manhã", no começo da década de 60. Suas estrelas e bolas pretas eram discutidas pelos nossos cinéfilos como resultados de jogos de futebol. David Neves e Mauricio Gomes Leite foram os leitores mais devotos do "Cahiers" que conheci-e duas provas de como a revista influenciou o Cinema Novo: como boa parte da redação do "Cahiers", David e Mauricio acabariam trocando a teoria pela práxis cinematográfica. "Nós descobrimos o cinema vendo os clássicos, mas foi com a Nouvelle Vague e a leitura do Cahiers que começamos a fazer filmes", resumiu a questão Cacá Diegues, numa entrevista ao próprio Cahiers (nº 225, novembro-dezembro de 1970).

Mauricio foi o primeiro a visitar o "vaticano", ou seja, a redação da revista, então na Champs-Elysées, em 1962 ou 1963. Voltou impressionado com a afetação de Luc Moullet, um dos críticos mais excêntricos da revista, que de cara lhe perguntou "Aimez-vous Imi?". A ficha do brasileiro demorou a cair: "Imi" era como seu colega parisiense tratava na intimidade o filme "Imitação da Vida", de Douglas Sirk. Curiosamente, Moullet fora o primeiro crítico do Cahiers a comentar uma obra do Cinema Novo: "Os Cajafestes", de Ruy Guerra, cobrindo o Festival de Berlim de 1962 (só apreciou a seqüência da curra em Norma Bengell). Antes, creio, o cinema brasileiro só dera o ar de sua graça, na revista, em duas coberturas do Festival de Cannes: o de 1953, quando Bazin estimou que "O Cangaceiro" faria mais pela exportação do cinema brasileiro do que os profissionais contratados para esse fim, e o de 1962, quando Douchet comparou "O Pagador de Promessas" a "Orfeu Negro", dando ampla vantagem ao filme de Anselmo Duarte, que, diga-se, só levou a Palma de Ouro porque o cahierista Truffaut muito empenhou-se por sua vitória junto aos demais jurados da mostra.

O simpático e festivaleiro David tornou-se, logo em seguida, um habitué da redação do Cahiers, quase seu mascote. Fez-se amigo do peito de Louis Marcorelles, um grandalhão entusiasta das comédias de Frank Capra e Leo McCarey, que seria o primeiro padrinho do Cinema Novo na revista. Em meados de 1962, Marcorelles atravessou o Atlântico e, depois de visitar Holywood, veio ver de perto o que os nossos cineastas em botão estavam aprontando. Conheceu Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e o resto do pessoal, assistiu a "Barravento" ("obra informe, um rascunho de 'Tabu'") e considerou promissoras as estréias de Joaquim Pedro de Andrade ("Couro de Gato") e Paulo César Saraceni ("Arraial do Cabo"). Pageado por David e por mim, até no folclórico bar da Líder ele bateu ponto, dando conta de seu séjour carioca no Cahiers 141, de março de 1963.

Àquela altura, já havíamos conhecido Truffaut, que passara alguns dias no Rio, vindo do Festival de Mar del Plata, aonde fora exibir "Uma Mulher Para Dois" (Jules et Jim). Ciceroneado também por David e este pobre marquês, o ex-enfant terrible do Cahiers fez um tour básico da cidade, contou histórias pitorescas da Nouvelle Vague e teve um encontro com críticos e cineclubistas na Cinemateca do MAM, registrado por Fernando Duarte (futuro diretor de fotografia de "Ganga Zumba") e mediado por Ruy Guerra. Presentes, entre outros, Mauricio Gomes Leite, Octávio Bonfim e um jovem cineclubista que, anos depois, seria presidente da Embrafilme e hoje é o nosso homem na ONU: Celso Amorim.

Selada a amizade do Cinema Novo com o Cahiers e a Nouvelle Vague, fomos buscar os primeiros louros na Europa. Demos, a princípio, mais sorte na Itália e Checoslováquia, que hospedavam mostras menores e não freqüentadas por medalhões, do que na França. Ao menos no Cahiers, não começamos com o pé direito. Jean-André Fieschi esnobou "Porto das Caixas", de Saraceni, e seu "caduco simbolismo formal", ao cobrir o Festival de Cannes (Cahiers, 145, junho de 1963), mas, no número seguinte, Jean-Louis Comolli encontrou qualidades notáveis em "Garrincha, Alegria do Povo", de Joaquim Pedro, por ele visto na mostra de Berlim. Sorte nossa que tenha sido Marcorelles o enviado ao Festival de Sestri Levante, na Itália, o que garantiu destacado espaço na edição de setembro para uma leva de filmes brasileiros, todos elogiados, inclusive "Porto das Caixas", pelo generoso crítico.

O inevitável duelo aqui armado entre "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" repetiu-se em Cannes 64. No Cahiers (156, junho de 1964), Nelson levou a melhor sobre Glauber. Moullet impressionou-se com "Vidas Secas" ("a única verdadeira revelação de Cannes") e achou "Deus e o Diabo" ingênua e falsamente primitivo. Melhor sorte teria "Os Fuzis", de Ruy Guerra, tido por Jacques-Doniol Valcroze (Cahiers, 158, agosto-setembro de 1964) como "o filme mais cativante" exibido no Festival de Berlim. Na edição seguinte, que entrou para a história como o último Cahiers da fase amarela, Jacques Bontemps tratou com cordialidade "Ganga Zumba", por ele visto na mostra de Porreta Terme: "Foi a descoberta menos triste do festival". A exemplo de Moullet, Bontemps implicou com "Deus e o Diabo", mais especificamente com a maneira artificiosa como Glauber descrevia a violência e lidava com o erotismo.

No Conseil des Dix (Cahiers 171, outubro de 1965), "Vidas Secas" só recebeu a cotação máxima de um outsider, Jean-Louis Bory. Do pessoal da redação, apenas Fieschi e Sadoul deram três estrelas. Comolli e Bontemps sapecaram duas, e Michel Delahaye, apenas uma. Quando chegou sua vez de submeter-se ao conselho de cinema mais respeitado do planeta (Cahiers 196, dezembro de 1967), "Deus e o Diabo" não fez mais bonito do que o filme de Nelson: também agradou mais aos críticos convidados do que aos integrantes da revista (levou três estrelas de Delahaye e duas de Bontemps, Fieschi e Jean Narboni). Nenhum dos dois filmes foi comentado por alguém da casa. Nem sequer por um analista de peso. Michel Petris (Cahiers 172, novembro de 1965) achou "Vidas Secas" "passionant", mas não uma obra-prima. "Deslumbrante e maravilhosamente lírico", foi o máximo que Jacques Lévy disse de "Deus e o Diabo" (Cahiers 197, dezembro de 1967).

Os dois primeiros clássicos do moderno cinema brasileiro ainda cumpriam sua trajetória européia quando, em março de 1966, a bíblia nos brindou com uma chamada de capa e um laudatório suplemento de 12 páginas dedicado ao Cinema Novo. Apresentado por Marco Bellochio, fazia um histórico do movimento e culminava com uma conversa entre Glauber, Joaquim Pedro, Diegues, Leon Hirszman e Saraceni, coordenada por Gustavo Dahl e Marcorelles. Apesar de um e outro desencontro (Fieschi não falou bem de "A Grande Cidade", Comolli pichou "O Desafio", Serge Daney fez restrições aos brilharecos de "Terra em Transe", que, por sinal, só entrou entre os dez melhores de 1968 na lista de Jacques Rivette), o namoro estava ficando sério. E mais sério ficou depois que Glauber levou "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" ao Festival de Cannes de 1969. Moullet foi o primeiro a curvar-se: "É uma obra-prima".

"Antonio das Mortes" (que é como "Dragão da Maldade" é conhecido na França) foi o filme que a redação do Cahiers escolheu para ilustrar a primeira capa em cores da revista, posta à venda em julho de 1969. A que saíra, três anos antes, com uma cena de "Chappaqua", filme psicodélico execrado pela revista, fora uma imposição de Daniel Filipacchi, por uns tempos dono da revista. Além da capa, Glauber teve direito a 20 páginas de entrevista. Onze números depois, Diegues também conversaria com a redação do Cahiers, numa longa e excelente entrevista, motivada pelo lançamento de "Os Herdeiros", com direito a chamada de capa. Dali em diante, ele e Glauber teriam mais vez na revista do que seus colegas. Mas o namoro acabou esfriando e praticamente foi desfeito quando um sarampão maoísta quase levou o Cahiers à falência, na primeira metade dos anos 70.

O Cahiers, afinal, se recuperou, na década de 80. Ainda bem, pois assim deu tempo de o cinema brasileiro sair da letargia em que mergulhara e reatar seu relacionamento com a revista, em novas bases. Sem padrinho. Mas com a mais dedicada madrinha que qualquer cinematografia gostaria de ter. Sylvie Pierre, bien sûr.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 15/7/2002

ON THE SET - A Little Synergy on Robert Altman's "A Prairie Home Companion" (by Kristin Hohenadel for the LA Times)


For 30 years, Garrison Keillor has spent his Saturday nights putting on an old-fashioned radio show, "A Prairie Home Companion," the live variety program heard nationwide by 4 million listeners. But while building an institution by raising Midwestern self-deprecation and subversively folksy tongue-in-cheek storytelling to an art form, he's been harboring celluloid dreams — which is how his base at the Fitzgerald Theater was transformed last summer into the set of Robert Altman's latest film, "A Prairie Home Companion," opening June 9.

"This has been my ambition for years, to write for a dramatic medium," Keillor said. "Because I'm no good at it, and one aspires to do what one cannot do. I still have a hard time writing dialogue, because I come from people who didn't talk. We sat and chewed our food, looked out the window."

Keillor originally approached Altman with the idea of making a movie based on the characters of Lake Wobegon, the mythical Minnesota town where much of his storytelling is based, after a development deal at Disney fell apart. But after Altman and his wife, Katherine, a longtime Keillor fan, attended a live taping of "A Prairie Home Companion" on one of its regular tours across the country (it'll be at the Hollywood Bowl on Friday), the 81-year-old Altman decided that he'd rather make a movie about the onstage drama and backstage dynamics surrounding the making of a radio show. As he did in his last film, "The Company" (2003), a faux documentary about a season in the life of a troupe modeled after Chicago's Joffrey Ballet, Altman wanted to immortalize an ephemeral art form on screen.

So Keillor, 63, imagined a last night in the life of a program much like his own, "turning the show inside out" by writing a scenario based on real and imagined "Prairie Home Companion" personalities. Writing a fictional documentary about himself was, Keillor said, "an odd assignment. But I was intrigued by the idea. And I was 60 years old. When you're 60, you kind of think to yourself, 'This chance may not come again.' "

Regulars Sue Scott and Tim Russell play a fictional makeup artist and a stage manager, respectively. Regular chanteuse Jearlyn Steele plays herself. Dusty and Lefty, the singing cowboys — character sketches incarnated on the radio by Keillor himself — are reborn in the hilarious duo of Woody Harrelson and John C. Reilly. "Prairie Home Companion" icon Guy Noir is now the theater's hapless security guard, played by Kevin Kline in 1940s attire. And central to the story are country music sisters Yolanda and Rhonda Johnson (Meryl Streep and Lily Tomlin) and Yolanda's daughter, Lola (Lindsay Lohan). The show's live audiences were replaced here by local volunteers.

All but two scenes were shot inside the Fitzgerald, which had been only lightly art-directed for its screen debut.

"The whole movie is inside — this is all in Keillor's mind," Altman said on a shooting break, sitting in a golf cart on the sidewalk outside the stage door that served as his way station in the 97-degree heat. "This has gotta be his humor, his tempo. I can't make up my own jokes. This is really about Garrison Keillor and his sense of humanity and his sensibility and his politics. All I'm doing is coming in and interpreting it. This guy's been in charge for 30 years. He has never, ever not been fully in charge of everything, except this movie. I have to see that he is in charge."

"No, he's the master of this world," Keillor insisted later from a glass-encased VIP lounge at the back of the theater that had been built by the art department for a scene in which Tommy Lee Jones — playing a broadcasting executive — comes to shut down the show. "Bob has an amazing, specific vision. He's here painting his picture with some materials that I've provided. But he has the upper hand and so, you know, that's good to know, so we don't have to fight. We know who makes the final cut."

This was how two of America's most singular voices found a common language, each calling the other one boss and going about his work. "They're two great forces coexisting," said Richard Dworksy, the house music director, who improvises onstage while Keillor performs, and a local boy whose parents owned the theater until 1983. "There's very courteous diplomacy going on."

"Keillor and Altman are a real natural combination," said Reilly, still in cowboy get-up. "There's something similar in the fabric of 'Prairie Home Companion' and some of the more well-known Altman movies — where there's a group of people, one comes in, one comes out and there's humor in it that's based on the acceptance of humanity and all its flaws and eccentricities. There's a kind of guiding ethic to the way they do the show, but it's also sort of chaotic. And that's very much Bob's sense of 'What are we gonna do? We're gonna find what happens in that moment and I'm gonna capture it and it won't be pushed or forced until the life goes out of it.' "

Creator's license

KEILLOR is known for rewriting right up until airtime, and much of the shoot involved Altman allowing him to hold forth from his stage, loomingly tall, in red tie and sneakers, while the house band jammed behind him and he and a rotating crew sang songs and jingles, told jokes and stories from the American heartland.

"Let's come in here now with a word about catchup," Keillor said in his homespun voice, delivering a service announcement for the fictional Catchup Advisory Board. "Yes, catchup — made from tomatoes that contain natural sunshine, which we need in this part of the country…. We come from people who brought us up to believe that life is a struggle — and if you should ever feel really happy, be patient — this will pass."

Then Altman yelled "Cut!" from the back of the theater. "That was great, Garrison," he said. "Let's try that one more time." Keillor improvised another take.

"I'm a writer, and there are times when I'm very proprietary about what I have written," Keillor said. "But there are scenes which, although I did write them, I'm glad to see them kind of smudged. Bob's very good at smudging. So the dialogue is kind of overlapping and a lot of things are going on and your sentences are kind of set into a flow of things that is actually a good fate for them. Had they been spoken like lines from Shakespeare, everyone would have seen that it wasn't Shakespeare."

Keillor has spoofed himself in the bumbling alter ego of G.K. "I am not playing myself exactly," he said, adding that his Hollywood dreams did not include acting. "Well, I mean I went along with it, but I certainly tried to get out of it. My hope was to write words that other people could say, and then I could sit in the dark and watch them. I wanted somebody else to play me."

Who, exactly?

"Well, George Clooney, of course," he said. "I couldn't really give myself much to do in the screenplay, knowing what little I was capable of — I couldn't have myself fall down the stairs, or burst into tears. We shot a scene and Lindsay was weeping. She did something to herself that produced tears. I wouldn't know how to do it. I don't cry in real life so how would I do it in a movie?"

The local press had its knickers in a bit of a twist about the celebrity onslaught, reporting Streep sightings in the Marshall Field's and the restaurant habits of the cast. But not even the presence of tabloid staple Lohan did much to disturb life in the quiet city of F. Scott Fitzgerald's birth. Downtown, Starbucks opens at 5:30 in the morning and closes by 6 p.m. and solitary homeless people drift like tumbleweeds down empty sidewalks. On St. Peter Street one evening at twilight, the only other living creature on the sidewalk was a rabbit.

But Mickey's Diner at 7th and St. Peter is always open, and the filmmakers couldn't resist using the camera-ready 1930s greasy spoon as a location. "It was an Edward Hopper scene," Keillor said of one shot where Kline sits alone at the counter. "When I saw what a beautiful shot Bob made over at Mickey's, I started to think maybe I'd made a big mistake in locking him up in this building."

Keillor had finished shooting for the day and changed into jeans, which did little to lend him a casual air. For all the coziness of his on-air persona, there is an awkwardness about his person — his stature makes it hard for most people to look him in the eyes, and he seems never to slip out of character.

The extras had gone home and Altman's director's chair had been moved onto the stage for a scene in the wings with Kline and Virginia Madsen (here as a dark angel in a white trench coat, haunting the wings). "I can't remember what prompted this, but in an early stage of development, Bob said, 'The death of an old man is not a tragedy,' " Keillor remembered. "I don't think he was referring to himself. But that just stuck with me. I asked for permission to write an angel into the script, and he gave it on the condition that there be no aura."

"Look at that — that's a picture," Keillor continued in a confidential hush, deflecting attention to the white-haired Altman, a pale, distant figure in the Caravaggio-esque house light, surrounded by silhouettes of the crew. "He's in his own world up there — the world of moviemaking. To the extent that I'm responsible for giving him something to work on that he's really enthused about, I feel as if I've done a good deed in a dark world."

One night after shooting, Altman gathered a nonexclusive mob of cast, crew, family and friends for wine, beer, pizza and a glimpse of the work in progress — an Altman tradition. On-screen, Harrelson and Reilly did a musical bad joke routine, Streep and Tomlin sang sweetly, Kline became the flesh and blood of Guy Noir, and through Altman's lens Keillor was both his oddly charming self and a suddenly probable leading man.

Scenes from this meditation on little guys and big corporations, God and country, the passing of time and the end of an era — in which the angel of death is a femme fatale, dangerous and beautiful and never far — were rendered all the more poignant by the specter of Altman himself, looking finally mortal in his ninth decade on Earth.

Those assembled laughed and cheered and burst into spontaneous applause, and tears. The lights went up and Altman looked around with the stricken air of someone who wasn't taking anything for granted.

"I needed a story, and that seemed to me to be the most honest story," Keillor said, pointing out that his own show died once in 1987 before being resurrected a few years later.

"So there is some aspect of truth to this. Every show does come to an end."