sexta-feira, junho 02, 2006

Welles, Em Processo De Reconstrução (por Amir Labaki para o Valor)


Aos poucos a esfinge Orson Welles (1915-1985) se deixa revelar. Todo um simpósio, marcando duas décadas da morte do diretor de "Cidadão Kane" (1941), foi realizado em agosto durante o último festival de Locarno (Suíça). O segundo volume de sua melhor biografia, que vem sendo escrita pelo ator Simon Callow, acaba de desembarcar nas livrarias britânicas sob o título "Hello Americans" (Jonathan Cape, 528 págs, 25 libras), abarcando o período entre a estréia de "Cidadão Kane" e o começo de seu auto-exílio na Europa com "Macbeth", em 1947.

Começam a ser conhecidas também novas versões de filmes reeditados à revelia de Welles. Como confessou na primeira célebre entrevista aos "Cahiers du Cinema", no início dos anos 1950, incluída no indispensável "Orson Welles", de André Bazin (Jorge Zahar Editor, 2005), dos oito longas-metragens até então realizados por ele, apenas dois tiveram versões finais sob absoluto controle do diretor: "Cidadão Kane" e "Otelo" (1952). Otimista, Welles incluía no pacote seu "Don Quixote", que jamais efetivamente conseguiria terminar.

"A Marca da Maldade" (1958), seu expressionista policial de fronteira, foi o primeiro a ser restaurado, em 1998. O labiríntico policial europeu "Grilhões do Passado" (1955), mais conhecido pelo título original de "Mr. Arkadin", acaba se ser reconstituído à montagem mais próxima possível das intenções originais de Welles, numa versão de 108 minutos lançada em DVD no mês passado nos EUA. Essa versão foi exibida na semana passada na Cinemateca Brasileira dentro do ciclo "Lost and Found", paralelo ao 62º encontro da Fiaf (Federação Internacional de Arquivos de Filmes), pela primeira vez realizado na América do Sul.

Outra atração da mesma mostra foi a projeção, ainda como "work in progress", da nova versão de "Jornada do Pavor" (1942), ainda em processo no Museu de Cinema de Munique, Alemanha. Baseado em um romance de Eric Ambler, "Jornada do Pavor" era um dos três filmes acertados em contrato por Orson Welles com a RKO. Os dois primeiros foram "Kane" e "Soberba" (1942). Pressionado pelo convite para vir ao Brasil rodar o inacabado "It's all True", Welles foi forçado a acelerar o término das filmagens e a primeira montagem de "Soberba" e a iniciar simultaneamente o trabalho em "Jornada".

Envolvendo uma história de espionagem de guerra na região da Turquia, Welles se apaixonou pelo entrecho de Amber, abandonou o roteiro desenvolvido por Ben Hecht e assumiu a produção e a reescrita com o ator Joseph Cotten, escalado para viver o protagonista, um agente americano perseguido por um assassino nazista. Welles reservou para si um papel coadjuvante, o do coronel Haki, chefe da inteligência turca, e passou a direção ao iniciante Norman Foster, um ex-ator que tinha dirigido para ele a primeira parte do projeto original de "It's all True", rodada no México e intitulada "My Friend Bonito".

Basta ver, porém, as primeiras seqüências de "Jornada do Pavor" para encontrar as digitais de Welles. A abertura vinculando o matador silencioso (o produtor Jack Moss) a uma assinatura musical, os enquadramentos dramaticamente inusitados, o tom irônico do elenco formado principalmente por membros da confraria wellesiana no Mercure Theatre, tudo remete a Welles.

Ainda assim, ele sempre se recusou a assumir a responsabilidade pela direção, como reafirmou em outra entrevista aos "Cahiers", em 1958: "Durante as cinco primeiras seqüências, eu estava no set, decidia acerca dos ângulos. Depois, dizia com freqüência onde colocar a câmera. Em outros termos, eu vinha para set com a câmera, determinava o enquadramento, fazia um teste de luz e decidia que a câmera ficaria em tal lugar em tal frase do filme etc. Então, de certa forma 'desenhei' o filme, mas não o dirigi propriamente: o diretor era Norman Foster".

Entre 6 de janeiro e 1º de fevereiro de 1942, Welles dedicou os dias a "Soberba" e as noites às filmagens de "Jornada". Três dias depois, tomava o avião para o Brasil, retornando aos EUA apenas em agosto. Em 12 de março, Foster encerrava a rodagem de "Jornada". No mesmo mês, a RKO, sob nova direção, começava a desfigurar "Soberba" com as filmagens de cenas ausentes do roteiro original e a reedição sem ouvir Welles. Seus problemas com Hollywood apenas começavam.

A censura do código Hays e a diplomacia tensa em tempos de Segunda Guerra cobraram um alto pedágio a "Jornada do Pavor". As aventuras extraconjugais do casal separado no início do filme foram extirpadas. As nacionalidades de vários coadjuvantes, esfumadas. Diálogos ironizando patriotismo e socialismo, simplesmente banidos.

A RKO reduziu "Jornada do Pavor" a um filme B de 68 minutos, com duas versões distintas para mercados mais e menos complicados, arremessando-o às telas para rápido esquecimento. Seguindo o roteiro original, a nova versão reincorpora agora ao filme todas as cenas presentes em uma, mas não em outra das duas cópias anteriores, trechos cortados e, quando o material foi perdido, fotos e extratos de diálogos. O mínimo que se pode dizer é que se trata de um legítimo Welles.

Nenhum comentário: