sábado, abril 22, 2006

Jean-Claude Carrière, O inconformista (por Rodrigo Fonseca para O Globo)


1968. Um francês que se tornaria um mito entre os aspirantes a roteiristas encontra um jovem cineasta tcheco exilado que viria a surpreender Hollywood com um certo “Um estranho no ninho” (1975). Naquele ano de emblemáticas revoluções contraculturais, Jean-Claude Carrière, cujo currículo ostentava o roteiro do cultuado “A bela da tarde” (1966), dividiu apartamento com Milos Forman. Em noites regadas a muita cinefilia, Carrière ouviu o amigo diretor contar detalhes de sua sofrida vida em Cáslav, na antiga Tchecoslováquia, agravada após a morte dos pais em Auschwitz, e complicada ainda mais numa juventude submetida aos padrões educacionais comunistas. Levou tempo até que Forman conseguisse exorcizar todos aqueles fantasmas. Mas Carrière aposta que na estréia de “Goya’s ghosts”, o recém-filmado longa-metragem que agregou os talentos desses dois velhos amigos, chagas do passado serão fechadas.

— Milos foi criado no sistema comunista tcheco, que foi, à sua maneira, uma modalidade de inquisição. E é dela que eu falo no roteiro de “Goya’s ghosts”. Uso o universo do pintor espanhol Francisco Goya para falar de um extremista e das conseqüências de seus atos — diz o veterano roteirista de filmes de Luís Buñuel (“O discreto charme da burguesia”), Andrzej Wajda (“Danton — O processo da revolução”) e Volker Schlöndorff (“O tambor”) em entrevista por telefone ao GLOBO.

O extremista a que o autor de “A linguagem secreta do cinema” — peça básica em qualquer biblioteca cinematográfica que acaba de ser relançada pela Nova Fronteira — refere-se é o Irmão Lorenzo, um monge vivido pelo espanhol Javier Bardem. Na trama, ambientada no fim do século XVIII, logo após a Revolução Francesa, Goya (o sueco Stellan Skarsgärd, de “Ondas do destino”) elege uma bela jovem (Natalie Portman) como musa. Mas Lorenzo, inconformado com aquela relação, vai infernizar a vida da moça até que ela seja presa por heresia.

— Goya é um pouco um coadjuvante nessa história. Eu inventei os personagens do monge e da musa para fazer o público refletir sobre a intolerância e o quanto ela altera a personalidade e a sanidade de um homem, no caso Lorenzo — diz Carrière, que transformou os abusos da Inquisição no assunto do romance “A controvérsia”, encenado nos palcos brasileiros com Paulo José e Matheus Nachtergaele.

Ainda em fase de montagem, mas já com estréia agendada no Brasil (fevereiro de 2007), “Goya’s ghosts” é a segunda parceria entre Carrière e Forman. “Valmont”, de 1989, foi a primeira.

— A maior lição que aprendi com Buñuel foi a idéia de que a imaginação não tem limites. Trabalhar na América contradiz isso. Mas Milos foi para lá e conseguiu fazer os filmes que queria, defendendo a liberdade. Ao falar de Goya, neste momento, ele só reforça este aspecto em sua obra, pois ele estará falando de um pintor que retratou de mendingos a aristocratas sem distinção, refletindo sobre tudo aquilo que seus olhos registravam e seu pincel imortalizava — diz.

Amigo do diretor Walter Salles, cuja filmografia ele diz acompanhar com assiduidade, Carrière não tem acompanhado com freqüência a produção brasileira dos últimos anos. Viu “Carandiru”, mas só em DVD, o que não tirou seu entusiasmo pelo trabalho de Hector Babenco, para quem escreveu o filme “Brincando nos campos do senhor” (1991).

— “Carandiru” é muito bem-feito. Gostei do filme.

Antenado com a situação audiovisual brasileira, mesmo sem ir muito ao cinema, ele se diz feliz de saber que o Brasil continua a filmar depois do período de silêncio causado pela extinção da Embrafilme, na era Collor.

— Fiquei muito feliz quando soube da retomada da produção cinematográfica brasileira, depois do hiato que aconteceu entre 1990 e 1994. Mas é inacreditável para mim saber que um país tão grandioso quanto o Brasil não é capaz de desenvolver um mercado de cinema forte. Até o Irã conseguiu. Aquele país tão pequeno se comparado ao de vocês tem uma produção que alcança não apenas festivais internacionais, como os circuitos de exibição do mundo inteiro. Como é que vocês não conseguem? — pergunta Carrière, que parece otimista em relação ao cinema francês contemporâneo. — Pelo menos quatro filmes feitos por ano na França são bons. E sempre há um que costuma ser ótimo. O que já considero satisfatório.

O roteirista destaca, entre as revelações de seu país, o parisiense Jacques Audiard, que no início deste ano ganhou oito Césars (o Oscar francês), incluindo os de melhor filme e melhor diretor, com o drama existencial “De tanto bater, meu coração parou”. François Ozon, do bem-sucedido musical “Oito mulheres”, é outro que chama sua atenção. Já os veteranos...

— Os jovens, principalmente as mulheres, estão fazendo um bom trabalho pelo cinema francês. O que é importante, porque Truffaut se foi e estamos velhos para continuar a produção. Eric Rohmer, por exemplo, já está com 81 anos. Não se pode exigir que ele continue a nos surpreender com seus filmes. Claude Chabrol, por sua vez, ainda faz bons filmes, um pouco por trabalhar com o inesperado. Eu não temo por nós. Temia pelos italianos, que tiveram o melhor cinema do mundo, mas perderam sua força com a entrada de Berlusconi no poder, com sua política estúpida. Eu ainda espero ver o renascimento daquela cinematografia. Assim como espero ver o fortalecimento da produção brasileira.