quarta-feira, abril 26, 2006

Volver (por Arthur Dapieve para O GLOBO)


Vai longe o tempo em que se ia a Madri para assistir às touradas. Hoje, vai-se a Madri para assistir ao Real. Apesar de ser torcedor do Barcelona, programei minhas férias de modo a pegar os merengues jogando em casa, no Santiago Bernabeu, diante de 75 mil espectadores, contra o Bétis, na zona de rebaixamento. Tremendo zero a zero.

Com a exceção de Beckham, no banco, todos os craques estiveram em campo, inclusive os cinco brasileiros. Ronaldo, apenas no terço final da partida, no lugar de Raúl. A imprensa só livrou a cara do lateral-direito Cicinho, por uma bola na trave meio sem querer, no primeiro tempo, e um chute perigoso, já nos acréscimos. Tremendo zero a zero.

Quis o destino, porém, que eu atirasse no que vi e acertasse no que não vi. No exato dia em que cheguei a Madri estava estreando “Volver”, o 17 longa-metragem de Pedro Almodóvar, cuja aparição nas telas brasileiras está prevista para o segundo semestre. Foi assim que, no salão do Palacio de la Música, afinal assisti a um craque no auge da forma.

A despeito do nome, trata-se de um cinema inaugurado em 1928, construído num estilo entre o barroco e o art nouveau na Gran Vía, espécie de Cinelândia preservada de Madri. Um cinema de rua como os que desapareceram no Rio: bonito, enorme, dá para entrar na fila da calçada minutos antes da sessão e conseguir sentar confortavelmente.

Assistir a um Almodóvar num lugar daqueles teve uma significação especial. Senti-me cercado não só pelo seu primeiro público, mas por seus personagens. Porque, embora não seja madrileno de nascença, e sim manchego, como o Quixote, Almodóvar está para Madri assim como Woody Allen está para Nova York. Ou Fellini, de Rimini, para Roma.

Um americano radicado em Paris, Elliott Murphy, tem uma bela canção, chamada “Is Fellini really dead?”. Ela termina com os versos: “Eu, eu estou quietinho/ E prendendo a respiração/ E imaginando se Roma existe após a morte de Fellini.” É o caso de um dia, fôlego suspenso, nos perguntarmos se Madri ainda existirá depois que Almodóvar morrer.

“Volver” trata precisamente disso, de morte, memória e culpa. O diretor de 54 anos declarou ao diário “El País”, da capital espanhola: “Há um momento entre os 40 e os 50 anos em que a gente se detém, olha para frente e para trás. Para mim, este momento chegou aos 50. Voltei o olhar para trás, para a minha infância, e para adiante, para o tempo que me resta até a morte. O resultado de ambos os olhares são os meus dois últimos filmes.”

Depois de “Má educação” (2004), incômodo acerto de contas com o ensino religioso do período franquista, “Volver” retoma, sob um ângulo diferente, o tema do abuso sexual. Nele, Raimunda (Penélope Cruz) luta para criar a filha adolescente, Paula (Yohana Cobo), enquanto o marido desempregado bebe cerveja e vê futebol pela TV. Certo dia, como a mente ociosa é o jardim do diabo, ele tenta estuprar Paula, que o mata com uma faca de cozinha. Raimunda esconde o corpo dentro da geladeira de um restaurante fechado.

Não estrago o prazer de ninguém contando isso. Este é, por assim dizer, apenas um dos dois pressupostos do filme. O outro é a aparição da mãe de Raimunda, Irene (Carmen Maura), à sua outra filha, Sole (Lola Dueñas). Tudo normal, a não ser pelo fato de que Irene morreu anos atrás, abraçada ao marido, num incêndio na vila natal da família, na Mancha. A tensão da volta dos mortos para acertar suas contas assombra “Volver”. Como se lê, e se verá, “Volver” é um filme de mulheres. As estrelas são as quatro atrizes mencionadas e mais Blanca Portillo, que vive uma prima doente, Agustina. O desempenho de todas é nada menos que brilhante. Penélope Cruz está muito bem também noutro sentido: linda, a maquiagem quase sempre borrada, surpreendentemente peituda (o que vale piadinha no filme) e ainda dublando uma versão flamenca para o tango “Volver” (a voz mesmo é de Estrella Morente). Dir-se-ia que Almodóvar a filma com volúpia.

A atriz de 31 anos, que já trabalhara com o diretor em “Carne trêmula” (1997) e em “Tudo sobre minha mãe” (1999), declarou na entrevista de capa da edição de março-abril da revista “ClubCultura”, da Fnac espanhola: “(...) Creio que Pedro é o retratista da mulher por excelência. Conhece a alma e a cabeça da mulher melhor que ninguém, porque é um observador muito bom e lhe interessa a complexidade da mulher”. O filme atesta isso.

Embora Almodóvar enxergue “Má educação” e “Volver” no mesmo movimento existencial, o novo filme está, pela extrema delicadeza, tão próximo dele quanto do anterior “Fale com ela” (2002). Os três, aliás, se seguiram à mui sentida morte da própria mãe do diretor, dona Paquita. Como a dor é boa conselheira da criação, o cinqüentão Almodóvar tem feito filmes bonitos de chorar, pelo perfeito equilíbrio entre comédia e drama, uma potencializando o outro. “Volver” talvez seja o melhor de todos. Ao final da sessão no Palacio de la Música, um mês atrás, segui a platéia madrilena: aplaudi, comovido. Olé.

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