sexta-feira, abril 28, 2006

"A Dama de Honra", Ponto para Claude Chabrol (por Ruy Gardinier para Contracampo)


Os últimos filmes de Claude Chabrol poderiam muito bem se resumir como documentários sobre como os personagens da burguesia de cidade pequena na França entram, dirigem e saem de seus carros. Basta mencionar o inesquecível final de A Teia de Chocolate, em que a ação se resolve por uma questão de proficiência no dirigir. Em A Dama de Honra, isso já está presente desde o começo, quando, ao passar dos créditos, vemos um travelling correndo lateralmente na velocidade e na altura de uma janela de carro. Se dessa vez o carro não tem um papel decisivo no desenrolar da trama, isso apenas faz com que seu papel na construção de um imaginário fique mais forte. Já o era em A Flor do Mal (La Fleur du mal, 2003), infelizmente inédito no Brasil, com os muitos motoristas, carros, caronas e viagens. Em A Dama de Honra, o carro é motivo de comentário (o funcionário do restaurante que se lembra de um homem pelo veículo que ele dirigia), de contemplação, de poder (quem tem e quem não tem, quem pode dirigir e quem não pode), e principalmente o papel de metaforizar quem pode controlar seu destino. Assim, é o protagonista Philippe, interpretado magistralmente por Banoît Magimel, que, saindo do automóvel, se toma como homem-de-família que equilibra e organiza a vida familiar do cotidiano que compartilha com sua mãe, Christine (aliás Aurore Clément, sempre ótima), e suas irmãs, Sophie e Patricia. Ele é a expressão do controle: é o mais racional da família, tem um futuro promissor trabalhando numa firma de construção e reparos, e parece carregar sua vida sentimental entre a pouca importância e a discrição.

Mas, como sempre em Chabrol, é quando os destinos fogem das coordenadas que tudo fica mais interessante. É aí que o estudo dos pequenos gestos mesquinhos da classe burguesa são alçados a um outro grau, a racionalidade se transforma em seu oposto, o senso-comum se transforma em confusão e patologia. Em Chabrol, não existe oposição, mas contigüidade entre um estado e outro. É essa a grandeza que povoa filmes tão distintos quanto Os Fantasmas do Chapeleiro, Mulheres Diabólicas, As Simplórias ou O Açougueiro, entre outros: a de circunscrever muito bem os gestos e os hábitos de uma classe muito bem instalada, e ainda assim mostrar como dela brota a loucura, a perversão, a luta de classes, enfim aquilo que de forma corrente na sociedade é visto como o outro da burguesia e de seu bom gosto, quando não passa de uma modalidade de sua própria existência. E os parâmetros de Philippe, sempre muito bem instalados, só cambaleiam quanto ele conhece Stéphanie, ou melhor, Senta, na festa de casamento de sua irmã Sophie (de fato, é Senta a "dama de honra" que dá o título ao filme). A perturbação tem lugar, e de uma hora para o outro os dois já trocam confidências de amor eterno, criam um laço que coloca na berlinda a boa distância aceitável. É curioso que o filme passe um bom primeiro momento apenas construindo o ambiente em que vive Philippe, mostrando seus costumes, seu ritmo particular, sua ligeira timidez e seu senso de recente patriarca, para só num segundo tempo mostrar Senta.

Na verdade, "A Dama de Honra" é um título que se refere não à mulher, mas à sensação que a mulher evoca na vida do protagonista. Em todo caso, é também pela construção – psicológica, física, rítmica – da personagem de Senta que o filme continua. E aí torna-se fundamental a escolha de Laura Smet, uma atriz voluptuosa com um rosto que, dependendo do ângulo que se vê, apresenta uma beleza inteiramente equilibrada ou desequilibrada, torna-se deslumbrante ou estranha. Essa dupla reação, essa dúvida, essa confusão povoará tanto a relação de Philippe com Senta quanto a do espectador com o filme: qual será a natureza dessa personagem excêntrica? Será apenas uma jovem com delírios de grandeza? Será ela uma mitômana? Ou apenas alguém de uma natureza tão diferente que espanta mas que não apresenta nenhum desvio de caráter? Enfim, uma louca de pedra ou apenas uma maluquete adorável? É entre esses dois pólos que o filme trabalha a percepção que Philippe tem de Senta, e é a indiscernibilidade entre os dois (o desejo dele pedindo uma interpretação, os fatos demandando outra) que faz com que ele mantenha o laço que une os dois. Pois Senta é para Philippe aquilo que, se por um lado suspende sua vida trivial e bem balanceada, é a única oportunidade para que ele fuja do convívio mediano em que está instalado – a esse respeito, a flagrante estupidez e feiúra do marido de Sophie e a profissão da mãe, manicure, só tornam o ambiente mais mundano e insuportável para ele. Se ele aspira a uma vida diferente, mais "heróica" ou marginal – algo que sua irmã menor, autora de pequenos furtos e usuária de drogas, já tinha escolhido antes dele –, é apenas através de Senta que ele alcançará.

A Dama de Honra comprova um percurso curioso na carreira de Chabrol. É que de um tempo para cá, ele vem preferindo fugir da grande forma, dos movimentos precisos e elegantes de câmera e escolhendo uma forma mais ligeira, menos burilada, priorizando a fluência da narrativa e chamando menos a atenção para a imagem como entidade autônoma. Ainda assim, Chabrol permanece o mesmo arquiteto langiano, tomando para si os gêneros e utilizando-os em sua trivialidade máxima (a esse respeito, o filme está às antípodas de Ponto Final, de Woody Allen, que se quer muito mais que um filme de crime, e claramente não é nada mais...), enredando tanto Benoît Magimel quanto a nós, espectadores, em sua teia de dúvidas, fazendo a ficção lentamente caminhar para um clímax e fazendo os créditos finais aparecerem ainda bruscamente, sem um epílogo que ratificasse as posições finais dos personagens. Esse novo momento de Chabrol lembra em parte o caminho de Dario Argento, que também vem trabalhando o gênero em seus aspectos francamente menores e reduz seu savoir-faire de encenador à simples fluência da narrativa. Não é questão de preguiça, de comodidade ou de ausência de tensão estética. Apenas uma aposta em fazer o cinema funcionar em sua chave de crença no gênero (a lição de John Carpenter) num momento em que a quase totalidade da fruição no cinema passa por um estado de auto-consciência absoluta, um efeito-Blair Witch, os Suspeitos ou Jogos Mortais (em que o whodunnit dá lugar a uma briga entre diretor e espectador para saber quem engana quem). Grande caricaturista da sociedade francesa desde Balzac e Flaubert, criador ele mesmo de uma "comédia humana" toda própria, algoz incansável da pequeneza da classe média, Chabrol faz com A Dama de Honra um suspense psicológico que dá gosto de assistir e, se não adiciona uma viga mestra a uma obra já consolidada, ao menos elabora e torna mais visíveis certos traços de sua construção. Se cada filme de Chabrol é um capítulo novo de seu único "livro", esperamos ansiosamente sua continuação, novamente com Isabelle Huppert, que acaba de estrear na França: L'Ivresse du pouvoir/A Embriaguez do Poder. To be continued...

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