segunda-feira, janeiro 23, 2006

Um trem para 2046 (por Joaquim Ferreira dos Santos para O GLOBO)



Ah, se Antônio Maria e Danuza Leão tivessem visto “2046 — Segredos do amor”. Sofreriam menos. Não teriam acordado de madrugada para injuriar as estrelas, não escreveriam depois como foram infelizes. Conformar-se-iam com o destino dos amantes, com essas fórmulas verbais feias que servem apenas para evitar o eu te odeio, desgraçada. Jogariam as mesóclises na parede, chamá-las-iam de lagartixa, morreriam de rir de uma construção dessas e partiriam para outra como nos é de destino. Assim. Fui. Assim, simples. Passar bem, sua megera. Quando quiser, pega o vestido vermelho que você esqueceu. Está no armário da empregada. Quando puder, devolve o DVD do Rappa que eu emprestei e você, Pixinguinha, não viu. Sem ressentimento. Há quem cante Orestes Barbosa. O amor é gema de ovo no copo azul lá do céu. Às vezes não há tanto bom humor disponível na farmácia do banheiro. Vá ao cinema. O melhor remédio para os males das paixões findas está no Arteplex. A felicidade mora no apartamento ao lado, o 2046. O problema é que ele sempre muda de hóspede. Antônio Maria. Danuza Leão. Diante de “2046” eles recordariam o que já estava escrito desde a primeira vez que se viram numa boate do Copacabana Palace. Pensariam melhor antes de abandonar as famílias e partir para a aventura. A impossibilidade amorosa ecoaria o chocalho da serpente nos cubos de gelo do uísque. Já estava escrito na poeira do big-bang. Não vai dar certo. As gigogas invadiram as praias para trazer a mesma mensagem aos que se aventuram pelo amor de verão. Só se engana quem quer. Dura um dia. Dois. Quatro anos. Depois pára de durar. É do jogo das algas marinhas e do dormir em conchinha. É da expectativa dos gemidos. Danuza. Maria. Não esqueceriam que o amor fecha as portas às três da madrugada e fica surdo, ei, garçom, aos pedidos de que se abra o bar para mais uma. Deveriam reconhecer. Há alguma inteligência nisso. Só pode. Não insistir na saideira e vitupérios de aniz. Suspirar. Reconhecer. Está de bom tamanho. O amor acaba. Com um tiro nos cornos, um bocejo na sobremesa, um grito de vagabunda. Acaba às seis da manhã, anunciado por uma cigarra de fuso descontrolado. É preciso ter ouvidos afinados para perceber os cacos-barcelos do coração despedaçando. Ouve só. Escuta essa. Eu conheço o caso de uma mulher que suspirava em ah. Numa noite dessas de verão quente gemeu em uh. Ela não ficou surpresa quando de manhã viu o vazio no travesseiro ao lado. O marido tinha notado. Foi-se. Eu vi “2046 — Segredos do amor” e vou ser sincero. Não há segredo algum no filme do chinês Wong Kar-Wai. As imagens trazem o mais moderno enquadramento fotográfico do cinema. De resto, é feito aquele torcedor com a placa, eu já sabia, comemorando o título do seu clube. Acaba. Nasceu para isso. Quem descrê? Com uma porta batendo, um telefonema de madrugada, um grito de eu não agüento mais, sua ordinária. O amor acaba. Paulo Mendes Campos também sabia e fez uma crônica liricamente-dolorosa, como lhe era de estilo, com o título. Se não acaba não foi amor. Foi biscate emocional. Dói. Fazer o quê? Faz parte da idéia. Acabar aqui e começar ali. A dialética dos barbudos aplicada ao que interessa na mais-valia dos sentimentos. Com a diferença de que o amor não vale nada. O amor é armadilha sem futuro, punhado de frases banais significando todas a mesma coisa, e essa coisa está no filme. Fica comigo esta noite, danada, chefona, gata extraordinária. Pessoas são diferentes. Não há nada mais diferente do que um jornalista do Cosme Velho e o jornalista chinês do filme. Já na hora de sofrerem calados a punhalada de suas meretrizes-pistoleiras, eles colocam na vitrola, ouçam o filme, uma gravação qualquer de “Perfume de gardênia”. Choram, os otários. Pessoas são diferentes, estou de acordo. Histórias de amor são todas iguais. Em “Grande Hotel” ou em Paul Auster. Os motoristas de ônibus, os jornalistas do segundo caderno do GLOBO. Todos gritam a mesma coisa que o chinês do filme. Volta. Me abraça. Em 2046, eis um dos motes do filme, o amor não doerá mais. Será prática entre andróides aperfeiçoados para levar as porradas da incomunicabilidade. A solidão na boa. Faltam 40 anos para que chegue 46 e se coloque em prática a sacada de Manuel Bandeira. Corpos se entendem, almas não. O filme é futurista, o amor é o mesmo desconforto de sempre. Cada um fala uma língua. Não há paz. Não há experiência que alivie o sofrimento do próximo desencontro. O amor é o tal carro com os faróis virados para trás, iluminando o passado e seu caminho já percorrido. A dor de ontem não alivia a de amanhã. Dói sempre mais. Peito partido, coração alquebrado, solidão-filha-da-mãe. Foi o que eu vi no filme e recomendo que cada um veja nele o que quiser. É triste. O amor é triste. Soluça patético como essas frases curtinhas. Eu te amo. Beija minha boca. Não me abandona. “2046”, o melhor filme da temporada, é de chorar com seu desapego ao que possa ser qualquer aceno de felicidade. A felicidade no filme não é sequer a gota do orvalho numa pétala de flor. Se a esperança existe, deixaram na mesa de edição. Chora-se muito. Na tela, na platéia. Em todos a impressão de que a única mensagem positiva é a do amor sem otimismo. Não dá para ter esperança em comunicar a paixão ao outro. Eu te desejo, ela não me deseja. Eis o diálogo que mais se ouve nas ruas. O poeta triste sentado na Praia de Copacabana me disse um dia. O amor é isso que você está vendo, zé-mané. Hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Em português já era incompreensível. Agora a melhor definição de amor vem em chinês. É cada vez mais complicado. Ninguém entende nada, mas eu quero ver de novo essa história. Muitas vezes. Crítico fosse, eu teria colocado o bonequinho aplaudindo de pé e chorando muito. Colocaria também uma bonequinha ao lado dando um tapa na cara do idiota. O bonequinho não aprende. Ninguém quer aprender. Se tirarem esse impulso de infelicidade de nossas vidas, ninguém sai mais de casa para trabalhar. É o que nos resta. Zumbis numa viagem para 2046, quando a memória de quem se amou não mais doerá. Ei, moço, faz favor. Um bilhete pra mim nesse trem. Sim. Sem volta.

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