domingo, janeiro 22, 2006

O Romance Sem Ficção De Capote (por Daniel Mendelsohn para a Entrelivros)


Capote, o filme, poderia adotar um dos dois formatos mais freqüentes do cinema americano para contar a vida de um personagem como o escritor Truman Capote (1924-1984). No primeiro caso, seria uma história edificante com final feliz. Uma criança sonhadora chamada Truman Streckfus Persons sobrevive a uma infância excêntrica e traumática, entre a mãe alcoólatra que vive na Park Avenue, uma das principais avenidas de Nova York, e a tia querida que mora numa cidadezinha do Alabama. Ao elaborar o estranho material dos anos iniciais em seu primeiro romance, Other voices, other rooms, torna-se, aos 21 anos, sensação literária em Manhattan.

O filme teria outro gênero bem conhecido e igualmente satisfatório para seguir: o da celebridade em declínio. Então veríamos o escritor Truman Capote, famoso, rico, arrivista querido das mulheres do jet set, às quais chamava de seus "cisnes", autor de elogiadas obras de ficção como Bonequinha de luxo [que acaba de ser relançado pela Companhia das Letras] e do romance de não-ficção A sangue frio [relançado pela mesma editora dois anos atrás], esse último um dos expoentes do new journalism, arruinar- se nas duas últimas décadas de vida.

Na derrocada, perde os amigos da alta sociedade por trair suas confidências, oscila de um projeto a outro sem concluir nenhum e se torna, quando morreu em 1984, aos 59 anos, uma pálida paródia de sua personalidade anterior, caótica e incoerente. "A única pessoa que pode destruir um escritor intenso e talentoso é ela mesma", disse Capote certa vez, observação que se revelou, pelo menos no seu caso, verdadeira.

Mas os criadores do belo e austero Capote [estréia no Brasil prevista para fevereiro] fizeram diferente. O diretor Bennett Miller e o roteirista Dan Futterman recusaram essas alternativas óbvias e escolheram uma linha menos dramática e menos apropriada para o cinema: a história de como Capote escreveu e publicou justamente A sangue frio, o livro que fez sua fama e que o autor considerava o seu "romance sem ficção". Trata-se de uma escolha que à primeira vista parece pouco razoável. O período de seis anos entre os assassinatos que vitimaram a família Clutter, de Holcomb, no Kansas, e as execuções dos dois homens responsáveis pelo crime, foi para Capote - cujo livro começa com o crime e termina com a pena - de monotonia e espera angustiante.

A maior parte do que poderíamos qualificar de "ação" se deu nos primeiros cinco meses desses seis anos. Os Clutter foram assassinados em novembro de 1959. Um mês depois, Capote partiu para Kansas, pensando inicialmente escrever um artigo para a revista The New Yorker - na época, uma das mais importantes publicações de jornalismo e ficção - sobre o impacto do crime na cidade e seus habitantes. Foi acompanhado por uma amiga de infância, a escritora Harper Lee, que logo escreveria e publicaria seu próprio e famoso livro, To kill a mockinbird. Os assassinos foram detidos em dezembro e o processo terminou em abril do ano seguinte, com os réus sendo condenados à morte. As execuções estavam originalmente previstas para maio.

Esse breve período quase não é dramatizado em Capote. O filme enfatiza, em vez disso, os cinco anos seguintes, durante os quais os assassinos tiveram advogados mais capacitados, entraram com recursos e conseguiram adiar a execução. Depois Capote se tornou mais próximo dos assassinos, especialmente de Perry Smith. Adolescente mirrado e com sérios transtornos psicológicos, Smith fora, como Capote, o filho sensível e com inclinações artísticas de mãe alcoólatra, que cedo procurou se aperfeiçoar (Aos cinco e seis anos, Capote andava com um pequeno dicionário, caneta e papel; Smith também fora autodidata e tinha um vocabulário extraordinário).

A identificação implícita entre o repórter e o assassino ajuda a explicar por que Capote se sentiu tão atraído pela história. Ou melhor, a razão pela qual seu genuíno interesse só começou após a prisão dos assassinos, quando percebeu que o artigo que estava escrevendo se tornaria um livro. Isso explica também por que A sangue frio, austero relato de assassinatos no Kansas rural, tem mais em comum com as fantasias iniciais de Capote do que poderíamos imaginar.

Desde Other voices, other rooms até The grass harp e Bonequinha de luxo, a ficção de Capote sempre girou em torno de jovens heróis tentando ser fiéis às suas fantasias em um mundo adulto hostil - papel em que Capote, com sua aparência de criança, se via e que atribuiu a Perry Smith. Em certo momento, Capote compreendeu que não poderia concluir o livro em que o artigo se transformara antes que Smith e Hickock, o outro assassino, fossem executados. E então se viu atormentado com o dilema moral suscitado pela tensão entre suas ambições literárias e a simpatia pelos acusados. O dilema é bem retratado na biografia de Capote escrita por Gerald Clarke [Capote, uma biogafia, editado pela Globo, 1993] e que serviu de base para o filme. O livro faz um relato ponderado e objetivo da agonia emocional vivida por Capote entre 1960 e 1965.

Capote queria ver seu livro publicado, mas isso certamente significaria a dolorosa morte de dois homens que o consideravam como um amigo e benfeitor, dois homens aos quais ele ajudara, consolara e, no caso de Perry, ensinara. O futuro de Capote aguardava a execução dos dois. Os comentários que fez a amigos e que manifestavam seus verdadeiros sentimentos surgem como um sombrio contraponto aos consolos que fazia a Perry e Dick. "Como você talvez saiba", disse a Mary Louise [Aswell, amiga de Capote e editora de Harper's Bazaar], a Suprema Corte negou os recursos (isso pela terceira maldita vez), de forma que mais cedo ou mais tarde algo acontecerá. Fiquei tantas vezes frustrado que nem me atrevo a esperar. Bem, cruze os dedos". É um absurdo moral esse pedido final, uma conjunção típica de infantilidade ("cruze os dedos") e horror (afinal, ele solicita que a amiga deseje a morte dos dois homens).

Não devemos esquecer disso ao considerar o devastador efeito que a redação de A sangue frio provocou na vida e na carreira do escritor. Criticando Capote, o crítico David Denby lamenta que "a sugestão de que o escritor nunca se recuperou da morte de Perry Smith ou do êxito do livro seja duplamente sentimental. Capote foi arruinado sim pelo álcool". Mas as evidências documentais mostram que Futterman e Miller (que encerram o filme esclarecendo o público que Capote jamais concluiu outro livro após A sangue frio) estão sendo fiéis aos fatos. "Ninguém", disse Capote ao seu biógrafo, "poderá saber o que A sangue frio exigiu de mim. Fui consumido até a medula. O livro quase me matou. Creio que, de certa forma, de fato me matou. Antes de começá-lo eu era uma pessoa relativamente estável. Depois, algo me aconteceu. Não consigo esquecê-lo, especialmente o enforcamento final. Terrível!".

"A sangue frio exigiu de mim. Fui consumido até a medula. O livro quase me matou", disse Capote ao biógrafo

Não precisamos nos basear apenas nas palavras de Capote. Após a publicação de A sangue frio, ele ficou rico e famoso e atingiu o ápice do sucesso. Em seguida, porém, tudo começou a ruir: os relacionamentos se deterioraram, ele nunca mais concluiu um livro e seu projeto de escrever um romance "proustiano" sobre a vida dos ricos revelou as limitações de seu talento. Assim, não parece sentimental atribuir a causa de sua decadência às experiências vividas durante a escrita de A sangue frio. "Algo me aconteceu", disse, e esse algo não se refere apenas às execuções, mas à terrível espera de cinco anos e tudo o que esta significou: o êxito do livro que ele sempre soube que seria seu grande feito dependia da morte de dois homens, um dos quais estranhamente parecido com ele.

O alcoolismo foi apenas a causa imediata desse declínio e, a crer nas fontes, também pode ser atribuído ao livro. Phyllis Cerf, esposa do editor e amiga de Capote, comenta que quando conheceu o escritor eles "tomavam um pouco de vinho no almoço e depois um Martini. Mas durante a redação de A sangue frio ele passou a beber cada vez mais, algo que não fazia antes". Os criadores de Capote acertaram ao considerar A sangue frio uma tragédia moral faustiana, um drama em que o protagonista paga um preço monstruoso pela realização de seus sonhos. Tudo no filme, que trata rapidamente dos assassinatos, é convincente: a chegada de Capote na cena do crime, a investigação, o processo, a ênfase na mudança da relação entre o escritor e o assassino, isto é, no apoio inicial dado por Capote ao "amigo" (como Smith gostava de dizer) e na brutal recusa final a ajudar ou se corresponder com o condenado.

O sentimento sombrio e contido do filme ecoa o livro de Capote e sua tragédia moral. As imagens, a fotografia (tão austera que da primeira vez que vi acreditei que eram em branco e preto), o desempenho dos atores e o roteiro são notáveis pelo caráter contido. O roteirista e o diretor parecem ter mergulhado não só na biografia de Capote escrita por Clarke, mas também em A sangue frio: o filme tem o mesmo ritmo sóbrio que caracteriza a poesia do livro. A abertura com os tiros nos campos do Kansas, a série de árvores, a calma na casa da fazenda constituem um perfeito análogo visual das sentenças iniciais do livro de Capote.

Muito será comentado sobre o magnífico desempenho do ator Philip Seymour Hoffman como Truman Capote. Hoffman não tenta imitar Capote. Os conhecidos maneirismos e tiques vocais são devidamente reproduzidos para autenticar o retrato de uma figura pública, mas o que faz a excelência da atuação é o caráter coerente recriado no conciso drama: egoísta, divertido, sentimental e, no final, cruel. Parte da qualidade desse desempenho e do filme em geral se deve ao roteiro de Dan Futterman, bem escrito e fruto de muita pesquisa. Talvez por ser também ator, Futterman sabe o momento de deixar o rosto do ator expressar e sabe quando as reações são tão eloqüentes quanto às ações ou palavras que as provocam.

A sutileza do desempenho do ator que vive o protagonista permite que captemos as reações interiores do escritor. Percebemos o momento em que surge a estranha simpatia de Capote por Smith e o conflito entre o esteta afeminado e o implacável e ambicioso autor. Há muitos filmes sobre escritores, que em geral recorrem a um lugar comum visual para transmitir o que as pessoas costumam chamar de processo criativo: folhas de papel arrancadas da máquina de escrever, amassadas e arremessadas no lixo. Pelo que sei, Capote é o único filme que consegue sugerir algo do processo real de criação literária.

À medida que a narrativa se desenvolve calma e muitas vezes silenciosamente, permitindo que percebamos quem é realmente Capote, o roteirista e o diretor sugerem, com intensidade crescente, que o escritor que deixa o condenado morrer para poder concluir seu livro é, de alguma forma, tão monstruoso quanto os próprios assassinos. "Eu posso matá-lo se você se aproximar demais", diz, brincando, Perry Smith no dia em que Capote lhe oferece uma aspirina através das grades da prisão. "Ele poderia matá-lo com a mesma facilidade com que apertou sua mão", comenta a irmã de Smith a Capote após este ter abandonado o condenado na prisão, frustrado e furioso com a recusa de Smith de narrar os detalhes dos assassinatos. ("14 de novembro de 1959, é sobre isso que quero ouvi-lo", afirma friamente Capote a Smith. "Esse é meu trabalho, Perry. Estou trabalhando. Quando você quiser falar o que preciso ouvir me avise").

No final, a crueldade de Capote ofusca a dos assassinos. O êxito do filme está em transmitir o que há de perturbador na similaridade entre Capote e Smith. Há, é claro, inexatidões, elementos que traem os preconceitos e desejos dos autores de dar uma forma à história que desconsidera a verdade dos fatos, distorção também presente em A sangue frio. O editor da New Yorker, William Shawn, torna-se um vilão no roteiro de Futterman, instando Capote a concluir o manuscrito a todo custo: uma transposição desnecessária de um impulso que era do próprio Capote. E Perry Smith não é o mártir da pena capital, como o roteiro de Futterman, em um raro momento de sentimentalidade, sugere.

Mas, em todos os outros aspectos, o sóbrio e angustiante filme de Miller e Futterman alcança o resultado obtido pelo livro de Capote: transformar algo real, algo que sabemos que aconteceu, em uma bela obra que transcende os terríveis detalhes do crime retratado.

Nenhum comentário: