sábado, janeiro 21, 2006

‘King Kong’ Não Gosta De Cinema (por Ricardo Calil para NoMínimo.com)

No material de imprensa de “King Kong” – superprodução de US$ 207 milhões dirigida por Peter Jackson (da trilogia “O Senhor dos Anéis”), que estréia hoje no Brasil –, descobre-se que um dos protagonistas do filme, o cineasta Carl Denham (Jack Black), foi inspirado em Orson Welles.

Denham é o personagem que move toda a trama. É ele quem decide viajar até a inóspita Ilha da Caveira para rodar um filme de ficção, quem convence a atriz Ann Darrow (Naomi Watts) e o dramaturgo Jack Driscoll (Adrien Brody) a se unirem ao grupo, quem decide levar King Kong, o enorme gorila que eles lá encontram, até Nova York. Denham não é apenas um homem enérgico, ele é também um mentiroso e um mau caráter, que coloca em risco a vida de dezenas de pessoas por causa de seus delírios de grandeza. Aparentemente, foi essa faceta da personalidade de Denham que motivou a comparação com Welles. Como explica Jackson, “imaginamos um cineasta tipo Orson Welles (...), um empresário ambicioso e meio trapaceiro no sentido de que Orson obtinha dinheiro para fazer um filme e depois fazia outro totalmente diferente”.

Ora, Welles foi, acima de tudo, um gênio do cinema, não um enganador de estúdios. Ele dirigiu obras-primas como “Cidadão Kane” e “Marca da Maldade” e sempre lutou contra a indústria para manter sua visão pessoal sobre seus filmes (difícil imaginar Jackson fazendo o mesmo). Que Welles inspire a composição de um personagem trambiqueiro me parece um dos aspectos mais significativos de “King Kong” – mais do que a arquetípica história de amor entre a bela Ann e a fera Kong, mais do que seus incríveis efeitos especiais, mais do que os milionários números de produção.

A referência a Welles pode parecer um detalhe pequeno dentro da enorme engrenagem de “King Kong”, milionário remake do clássico de 1933, dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Mas o filme como um todo tem uma visão cínica e amarga do cinema e da indústria do entretenimento. Em um dado momento, Denham diz a Ann: “Pode confiar em mim. Eu sou um produtor de cinema”. E o espectador ri, sabendo que só pode ser uma piada.

Naquela que é a cena mais marcante do filme, Ann faz algumas estrepolias que aprendeu no teatro de vaudeville (onde, aliás, estão as raízes do cinema) para estabelecer algum tipo de comunicação com King Kong, e este delicia-se com as gaiatices. O filme trata o espectador como se ele fosse também um gorila. Depois de um começo animador, em que o cineasta apresenta os personagens e situa a ação na Nova York da Grande Depressão dos anos 30, o filme recorre a uma série de truques baixos para prender a atenção do público a partir do momento em que o grupo de Denham chega à Ilha da Caveira: luta de Kong com dinossauros, ataques de insetos gigantes e outras demonstrações desnecessárias do avanço da computação gráfica. Nesse miolo, o filme parece menos um remake de “King Kong” do que um pot-pourri de grandes sucessos do cinema, como “Parque dos Dinossauros”, “Indiana Jones” e “A Múmia”.
No final do filme, quando Kong vira atração circense para uma platéia deslumbrada de Nova York, percebe-se que o público, na verdade, é ainda menos sofisticado que o gorila. Apesar de brutal, o animal é capaz de demonstrar sentimentos nobres por Ann, de se sacrificar por amor. Já o espectador está atrás apenas de emoções baratas, de clichês sobre o mundo selvagem. O único humano de princípios do filme é Ann, justamente aquele que troca a lógica do “show business” pela da compaixão.

“King Kong” deveria representar o apogeu da indústria de entretenimento e uma celebração ao cinema – já que se trata de uma recriação de um dos filmes mais famosos de todos os tempos pelo diretor mais celebrado da atualidade. Mas resultou, de maneira insólita e um tanto esquizofrênica, em um ataque direto ao meio que o concebeu. Provavelmente será um fenômeno de público sem ter apreço pelo público.

Entrará para a história do cinema sem gosto pelo cinema.

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