“Soldado Anônimo”, filme de Sam Mendes que estréia hoje no Brasil, provocou polêmica nos Estados Unidos por causa de seu suposto tom apolítico, por se recusar a fazer paralelos entre a primeira Guerra do Golfo, que a produção retrata, e a atual Guerra do Iraque, que ainda domina o noticiário norte-americano.
Na mais dura crítica ao filme, A.O. Scott, do “New York Times”, escreveu: “É um filme que se aproxima de algumas das mais urgentes e dolorosas questões da atualidade, limpa a garganta ruidosamente e, com ocasionais floreios de uma impressionante retórica, não diz nada”. O crítico Rick Groen, do “Toronto Globe and Mail”, chegou a conclusão parecida: “O resultado é um filme de guerra que sacrifica qualquer voz própria e termina não sabendo o que pensar”.
Peço permissão para discordar dos ilustres colegas. “Soldado Anônimo” é um filme político; que faz paralelos entre as duas guerras do Golfo, mais por contraste do que por semelhança; que toma partido, mesmo que de maneira dissimulada, a favor da maneira como foi realizada a atual invasão do Iraque.
A produção baseia-se no livro “Jarhead”, do ex-fuzileiro Anthony Swofford, sobre suas experiências na primeira Guerra do Golfo, em 1991. Na época, o ditador iraquiano Saddam Hussein invadiu o Kwait, Bush pai determinou o envio de tropas para a região e, depois de meses de tensão, a guerra em si foi decidida em questão de dias a favor dos americanos, graças aos bombardeios de precisão e não aos tiros dos soldados.
Swofford não fala sobre grandes batalhas, mesmo porque não participou de nenhuma. Nem de feitos heróicos, pois não chegou disparar sua arma. Ele discorre longamente sobre o tédio da espera, o temor de ser traído pela namorada, a rotina de masturbações, de treinamentos árduos e de brincadeiras juvenis com os colegas.
O grande drama descrito pelo autor é o da expectativa por um confronto que não chega, o desejo de usar um fuzil que nunca dispara, a frustração por participar da primeira guerra “limpa” da história.
Soldado Anônimo” adota, de forma integral e não-crítica, o ponto de vista de Swofford (muito bem interpretado por Jake Gylenhall). Não é a visão do Exército americano, mas de um fuzileiro com nostalgia das grandes guerras, dos atos de heroísmo e da catarse da tragédia.
O grande desejo de Swofford, reproduzido pelo filme, é participar de uma verdadeira batalha, atirar contra iraquianos, chorar a morte de um companheiro. Não apenas ver bombas atiradas por aviões, encontrar inimigos já carbonizados, suportar a infantilidade de seus colegas. A guerra, a seu ver, só faz sentido no combate corpo a corpo.
E aí chegamos ao atual conflito no Iraque. Ao contrário da anterior, esta é uma guerra suja, com grande participação dos marines, combates intermináveis em terra, milhares de baixas dos dois lados (mesmo porque desta vez houve a invasão de um país pelos Estados Unidos, o que não ocorreu na primeira Guerra do Golfo). O governo americano em geral, e particularmente o secretário Donald Rumsfeld, já foi muito criticado por escolher essa estratégia de combate, em vez de fazer uso mais seletivo e inteligente de seu poderio bélico.
Talvez seja uma teoria conspiratória dizer que “Soldado Anônimo” é um filme pró-Bush. Mas a produção defende a idéia de que a boa guerra não é aquela vencida com rapidez e facilidade, e sim a que exige doses cavalares de sangue e sacrifício – tese bastante confortável para o atual presidente americano.
Ao ser criticado por sua visão da Guerra do Golfo, o diretor inglês Sam Mendes (de “Beleza Americana”) disse que a liberdade de expressão lhe garante a possibilidade de fazer o filme que bem entender, no momento que quiser – o que ninguém pode discutir. Mas ele há de reconhecer que fazer um elogio do fuzileiro em plena guerra do Iraque tem suas implicações – entre elas, ser identificado como autor de um filme de direita.
Esse fato por si só torna “Soldado Anônimo” um mau filme? Não. Na história do cinema, existem belas obras com idéias abjetas (vide o nazista “Triunfo da Vontade”, da alemã Leni Riefenstahl) e obras abjetas com belas idéias (como o panfletário “Tiros em Columbine”, de Michael Moore).
Há algumas seqüências fantásticas em “Soldado Anônimo”, como a aparição de um cavalo ensopado de petróleo na noite do deserto ou a salva de tiros dada pelos fuzileiros em uma rave para compensar o fato de que não usaram suas armas em combate. O que impede a produção de ser memorável é angústia da influência de outros filmes.
Da mesma forma que Swofford sente a nostalgia da grande guerra, “Soldado Anônimo” tem saudades do grande filme de guerra. Isso pode ser notado nas citações diretas ou indiretas a “Apocalypse Now” e “Nascido para Matar”, entre outros. São referências inteligentes, mas resignadas. Como não pode fazer melhor que Coppola ou Kubrick, Mendes homenageia, mas a comparação lhe cai mal.
Não apenas aqueles dois clássicos são melhores, como ainda têm idéias mais defensáveis. Neles, o drama do protagonista é matar seu inimigo. Em “Soldado Anônimo”, a tragédia é não matar – o que dá uma justa medida dos propósitos do filme
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