sexta-feira, março 31, 2006

Tenho saudades de um outro cinema (por Arnaldo Jabor para O Globo)


Muita gente chega para mim e diz: “Como é?... Você não vai voltar a fazer cinema?”. “Sei lá”, respondo. E penso: “Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?” Às vezes, me dá vontade de filmar alguma coisa tênue, poética, não mergulhada no labirinto de produção e distribuição. Nos anos 60, buscávamos um cinema essencial, o chamado “específico fílmico”, que estaria talvez nos filmes de Eisenstein, ou em Murnau, ou em Dreyer, sei lá. Os cinéfilos pensavam: “Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?” Isso me faz lembrar uma famosa frase do grande cineasta-fundador Humberto Mauro que, daqui a pouco, eu conto.

Na verdade, tenho saudades do cinema, sim, justamente nesta época em que as imagens nos penetram, inundam nossos olhos e ouvidos. Mas tenho saudades de outro cinema, da fragilidade dos filmes antigos e da idéia do “objeto único” a que eles almejavam. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio — falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo “Cahiers du Cinema”, pelos círculos de fumaça dos Gitanes sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas. Atualmente, a cinefilia soa quase como um vício sexual; talvez tenha sido. Há um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Mas, se eu reclamo desta profusão, dizem: “Ah, qual é a tua, cara? Isso é bom para o cinema, aumenta a difusão no mercado etc e tal.!”. Talvez, talvez, mas tenho saudades da sala escura, do cinema-segredo, do cinema dos pobres tímidos, do cinema como ilusão solitária, realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Como era bom esperar um filme do Fellini, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Faltam-me o gosto-arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tive e tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor e roteirista argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois “gays” jovens que ele chamava de suas “filhas”. Uma delas era Yasmin, “filha” dele com o Ali Khan — pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era “filha” dele (dela) com Orson Welles.

Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, a “Yasmin” achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua “mãe”. Segredou-lhe : “Mamãe... ontem eu vi ‘Stella Dallas’ do King Vidor na TV... chorei tanto...”. Eis que a “mãe” Puig balbuciou-lhe do leito: “É... a Barbara Stanwick está ótima... mas o John Boles nunca me emocionou muito”. Yasmin, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a “irmã”: “Mamãe está melhorando!”.

Nessa época, o cinema ainda tinha a tal “alma” que hoje desapareceu nos supermercados e videoclubes. Por isso, me lembrei do Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: “Humberto, meu querido, você precisa ir no meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!”. E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: “Por que querem que eu filme cachoeiras?”. Toda hora era isso: “Rapaz, eu vi uma cachoeira incrível num lugar assim, assim, pra você filmar!”. Humberto Mauro não entendia o porquê. Um dia, ele deu uma palestra num cineclube do interior quando, na volta, já na estação, atrasado para pegar o trem, um dos garotos agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: “Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a essência, a alma do cinema?”. E o velho Mauro, em meio à fumaça da locomotiva, teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: “Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!”. Esta frase ficou famosa entre os então “amantes da Sétima Arte”. E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua ainda recente invenção: “Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam...”

Talvez seja esta a “essência” do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava sua morte na interpretação de uma melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta — eu que me apaixonei por Brigitte Helm em “Metrópolis” e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.

Por isso, a idéia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século XX foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas que a esgotassem.

Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na política, é fracasso certo.

Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrário, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente, quanto no monolitismo da massificação ocidental, vemos este perigo e desejo.

Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra, e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.

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