sábado, março 11, 2006

O verdadeiro segredo de Brokeback Mountain (por Reinaldo Azevedo para Primeira Leitura)


Um espetáculo de hipocrisia, com todos os rigores do preconceito às avessas, que é a essência do (não) pensamento politicamente correto, armou-se em torno do filme O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. Manifestações e críticas as mais diversas têm quase sempre a mesma intenção: negar que seja um filme gay. Na imprensa brasileira e estrangeira, o que mais se lê é que se trata de um “filme de amor”, “convencional”, “sensível” etc. Até parece que o enredo, com personagens heterossexuais, daria a mesma audiência, geraria a mesma curiosidade ou assumiria a aura, vá lá, “de resistência” — todas essas características, enfim, ora associadas à obra. Se um deles fosse uma mocinha, não daria um curta-metragem. Melhor seria filmar a suruba das ovelhas (se é que ovelha faz suruba).

Foi preciso que seu diretor, que recebeu o Oscar, deixasse claro, em seu breve discurso, o óbvio: trata-se de um filme gay. É uma revelação feita depois de a fita ter seduzido platéias mundo afora (Lee não é besta). Qual o problema? Nenhum. Mas, pelo visto, o homossexualismo ainda precisa ser tratado como “o amor que não ousa dizer seu nome” para preservar sua aura de quase mistério; para que os homossexuais, na contramão de sua militância explícita, que pede visibilidade, possam se ocultar numa casca de especialidade e diferença que os tornariam superiores à massa heterossexual. Mutadis mutandis, o mesmo se dá com a ideologia: o segredo da eficiência está no ocultamento.

A militância, no caso da estética, seria tão mais efetiva, eficaz, quanto mais se escondesse. Tanto quanto o discurso político dos gays é convidado a sair do armário, o da arte gay teria de entrar. A dimensão política do proselitismo ganha a rua nas paradas e fala à razão, apelando à igualdade de direitos, à cidadania, à Constituição. Já a dimensão artística, bem, esta tem de se acrisolar, limpando-se das impurezas da militância para seduzir: quer falar ao coração.

Negar que Brokeback Mountain é uma elegia — no sentido literal da palavra — cinematográfica ao amor gay me parece uma soma de preconceito e ambição a um só tempo. O preconceito: caso se admita que se trata de um filme gay, estaria diminuído o alcance dos dilemas existenciais que ele propõe. Por quê? Indivíduos gays podem e são, quero crer, tão complexos ou tão rasos, tão idiotas ou tão profundos quanto qualquer heterossexual. A ambição: ao se tentar retirar o decalque gay do filme, insinua-se que o conflito vivido pelos dois pastores — não são caubóis — poderia ser experimentado por quaisquer homens. Um belo dia, você vai até uma montanha com o seu amigo, perde o sono, tem uma ereção e faz sexo com ele. Será assim? Por prudência, se ele o convidar para beber ou jantar, melhor tomar cuidado para não ser bebido ou jantado: vai que você não tenha savoir vivre para encarar o dia seguinte... Convenhamos: trata-se de uma grossa bobagem.

Assim, percebam, a estratégia de ocultar o real caráter do filme (não renegado pelo diretor, reitero) oscila entre dois extremos: nega-se que seja uma obra gay para que aquele amor possa ser universalizado como um drama humano; tornado um drama humano, é como se cada um de nós fosse convidado a perscrutar os limites da própria sexualidade: afinal, aquilo poderia ou não acontecer com a gente? A resposta, obviamente, é não. “Não” desde que o indivíduo seja heterossexual. É simples assim. A tal indústria cultural, também ela, entra alegremente nessa dualidade. Caso seja obrigada a encarar o lado militante da fita, as coisas se complicam comercialmente. Vendida a obra como um Romeu e Julieta, eventualmente Romeu e Romeu, tudo fica mais tranqüilo. A síntese: eles se amam, mas o mundo conspira contra a beleza.

Eu não conhecia o conto Brokeback Mountain, de Annie Proulx, em que se baseia o filme. Como literatura, é infinitamente inferior à obra de Lee como cinema. Mas há um dado interessante. Seus pastores nada têm dos bonitões escolhidos pelo diretor para representar o misto de idílio amoroso e desaire. Ao contrário até: entende-se que são tipinhos bem ordinários, corriqueiros, feiosos.

É claro que dois machões se agarrando na montanha falam mais aos corações e à curiosidade do que, por exemplo, os travestis e amalucados de Almodóvar ou, como é o caso do conto, um dentuço e um narigudo que decidem trocar fluidos corporais. As personagens do cineasta espanhol têm uma sexualidade marcada, carregam traços óbvios de desvio de comportamento em relação à norma socialmente aceita, desafiam o padrão com seus exageros e rococós sentimentais. E, curiosamente, não se percebem em sua obra traços de misoginia — muito ao contrário. Não é um mundo que exclui as mulheres ou que as veja como empecilho à felicidade dos homens.

Ang Lee, em seu filme assumidamente gay (na hora do Oscar...), evita os trejeitos — e nisso está de acordo com a obra original —, mas desloca para a montanha duas figuras olímpicas. É como se dissesse: “São homens demais para ser gays, são belos demais para ser gays. E, no entanto, são gays”. E não há como ignorar: as mulheres são apêndices numa relação que, com efeito, faz jus ao conceito de “amor viril”. Lee trata o homossexualismo como assunto de macho. A mulher tem de sair da sala e ir passar o café ou fazer tricô. Cadê as feministas, que não gritam? Mulheres se acabam de chorar no cinema. Estranho. Seu eu fosse mulher, chutaria o balde.

O verdadeiro segredo de Brokeback Mountain, o filme, está em fazer uma elegia homossexual que não ousa dizer seu nome, como se a transa dos dois pastores fosse fruto de uma conspiração da natureza que os cerca, que a todos inclui, também os espectadores (e nada pode ser mais militantemente “gay” do que isso) e em demonstrar o destino, digamos, nada invejável dos dois rapazes. E, é bem possível, talvez isso seja do agrado de Hollywood. Se eles tivessem descido da montanha, montado uma ONG e saído EUA afora defendendo que dois pastores têm mais o que fazer do que cuidar de ovelhas, talvez a obra não fosse assim tão aplaudida. Talvez nem merecesse um filme. À platéia heterossexual que mal segura as lágrimas talvez conforte o fato de que, com efeito, aquela coisa toda não termina bem.

Ang Lee abre espaço, vocês verão ou viram, para o proselitismo militante. E se os dois tivessem assumido o seu amor? E se tivessem tido a coragem de ficar juntos? E se tivessem enfrentado as convenções? E se mandassem as chatas das mulheres plantar batatas? Bem, caros, é como perguntar: e se os Montecchio e os Capuleto tivessem se entendido a tempo? Amor gay que dá certo acaba desfilando na parada, entendem? E se banaliza, como um amor heterossexual qualquer. O casal acaba no supermercado quebrando o pau por causa da marca do macarrão, como já vi uma vez. Cadê a poesia quando seus filhos começam a brigar no gôndola por causa do sabor da biscoito recheado? Afinal, a vida amorosa de 99,9% das pessoas não segura uma página ou uma seqüência de 10 minutos, gay ou não. É o desastre que alça o atraca-atraca dos machões à condição de poesia superior.

Irrelevâncias e relevâncias
O filme, em si, é irrelevante. Não dou a menor importância para o que as pessoas fazem entre quatro paredes. Acho a militância homossexual chata e burra, como qualquer outra. As questões de gosto, tornadas causas, logo ambicionam ou à condição de uma nova moralidade ou de uma ditadura de comportamento. Tenho amigos homossexuais e heterossexuais, masculinos e femininos. Como não faço sexo com eles, não me interessa como se comportam na cama. Faço e ouço piadas sobre o tema, o que é comum. Mas não abro espaço para que me contem aventuras. Não quero saber. As pessoas as mais inteligentes, interessantes, atraentes ficam idiotas falando de suas intimidades. Assim, o filme me interessa como um fenômeno de recepção.

O que quero dizer com isso? Brokeback Mountain é tão “não-gay” quanto Diários de Motocicleta, de Walter Salles, por exemplo, é um filme “não-político”. Vocês se lembram, né? Aquele que narra a viagem do Che Guevara pré-revolução cubana pela América Latina. Vistos ambos no detalhe, há até uma similaridade de linguagem. A paisagem física e humana entre encantadora e inóspita ia compondo a têmpera do revolucionário, assim como a vasta solidão da montanha aproxima os pastores. No filme de Salles, Che era um sem-ideologia (o que é mentira histórica), que vai desenvolvendo seu senso de justiça forçado pela conspiração dos fatos. No filme de Lee (e também no conto), os dois moços sobem heterossexuais e descem sabidos de todos os segredos. Ora, ao subir, cada um deles já era o que era, ainda que não tivessem provado da fruta do pecado.

Eis, pois, o fenômeno que interessa debater. Nos dias que correm, os temas que exploram as fronteiras do certo e do errado, que remetem a escolhas perigosas, políticas ou sentimentais, morais ou éticas, acabam se perdendo numa superfície gelatinosa que, rigorosamente, não ousa dizer seu nome. Na revista Primeira Leitura deste março, Michel Laub escreve sobre os filmes Munique, de Steven Spielberg, e Paradise Now, de Hany Abu-Assad. Também nos dois casos, faz-se um esforço para diluir escolhas no que eu ousaria chamar de poço de clichês dialéticos, onde tudo é nada, nada é tudo, o certo está sempre no relativo, e o telespectador é permanentemente convidado a não ter uma opinião, a flertar com todas as possibilidades.

Brokeback Mountain é um filme gay que tenta não parecer gay. Mas os diretores têm o direito de fazer filmes gays, certo? Paradise Now é um filme que defende o terrorismo, embora se esforce para apresentar uma “leitura humana” dos facínoras. E há quem ache que isso é também um direito. Bem, nesse ponto, eu seria obrigado a começar outro texto...

2 comentários:

Anônimo disse...

Seu artigo, apesar de extremamente bem escrito, é completamente equivocado. E o problema principal está em sua afirmação: "tornado um drama humano, é como se cada um de nós fosse convidado a perscrutar os limites da própria sexualidade: afinal, aquilo poderia ou não acontecer com a gente? A resposta, obviamente, é não. “Não” desde que o indivíduo seja heterossexual. É simples assim."

Infelizmente para você, não é simples assim. A homossexualidade não diz respeito somente aos homossexuais: ela está presente em TODOS os indivíduos, com pouquíssimas exceções, só para confirmar a regra. Se a pessoa a reprime ou não, isto é problema dela. De uma forma ou de outra, pagará o preço de suas escolhas. E, além disso, essa "escolha" também é influenciada pelo meio e época em que vive. Se o autor vivesse em outra época, em outras circunstâncias, talvez nem achasse necessário escrever sobre o tema.

Ao tentar invalidar a "universalização" proposta pelo Ang Lee, o autor realmente revela o que lhe incomoda, e só isso.

Os personagens de Brokeback não são gays, em princípio. Tenho claro que, ao aceitar a transa proposta por Jack Twist, Ennis Del Mar não está entregando uma carta de intenções ativistas. Está apenas querendo um sexo circunstancial e efêmero, uma one-night-stand. E isto poderia acontecer com qualquer heterossexual.

No entanto, ao consumar o ato, ele também descobre o "segredo": que dois homens podem sim se amar, com a mesma (ou até maior) intensidade que um homem e uma mulher, que tudo o que tinha aprendido a respeito era um mero blá-blá-blá, palavras e mais palavras, mentiras sociais.

É isso, meu caro: acabou o conforto de se considerar "imune" ao homossexualismo. Eu, em meu longo percurso aqui na terra, posso dizer, sem medo de errar, que nunca conheci um 100% heterossexual. Só de ouvir falar. Dizem que o Jorge Ben é um... Mas há controvérsias...

Talvez seja um pouco tarde para o autor descobrir o segredo. Se não for, talvez seja preferível mesmo não descobri-lo, já que as conseqüências, na época e lugar em que vivemos, são complicadas... Lembra do filme "O Segredo de Brokeback Mountain", por exemplo? Tudo bem, ninguém está lhe cobrando nada... A única cobrança, deste humilde leitor, é que, ao escrever para o público, o autor faça um exame de consciência em suas intenções e motivos, para não cair na esparrela de se enganar, e enganar o público.

Anônimo disse...

best regards, nice info
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