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Assim, não é de estranhar que em "Marcas da Violência" tudo pareça deslocado à primeira vista: cenário provinciano, personagens caricaturais, atenção particular da direção à observação da rotina e da vida familiar. Pensamos estar em terreno novo para o diretor, e de fato estamos, embora tenhamos a certeza absoluta de que as coisas vão se encaminhar progressivamente para a barbárie e para a monstruosidade.
Ora, o novo filme de Cronenberg é devedor de um fatalismo langiano em sua construção dramática – uma lógica de encadeamento das ações sob a qual não se tem controle, e que, no fim, vai revelar a natureza profunda de cada personagem. A começar pelo prólogo – um primor de realização, com sua evocação atmosférica de pesadelo e sua serena descrição de um ato animalesco e boçal – e pela cena que dá seqüência, em brutal contraste com a anterior, percebemos que não há rota de fuga possível para evitar o choque entre estes dois registros, aparentemente sem pontos de contato.
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Como em um episódio de The Twilight Zone, um caso singular vai virar esse quadro do avesso e pôr em xeque as bases das instituições que sustentam toda essa normalidade. No centro está a figura do pai, onipresente nas ficções do cinema americano contemporâneo que buscam engajamento em discurso sobre as mazelas daquela sociedade. Em "Marcas da Violência", o que parece estar em jogo é o deslocamento do centro de poder da figura materna, um ponderado depositário de valores pacíficos e civilizatórios (uma advogada, não menos), para um pai de velho testamento, um pesadelo de masculinidade rompante e descontrolada.
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O retorno dessa fantasia reprimida nasce de um profundo desencanto expresso no diálogo dos adolescentes – para eles, amadurecer significa se resignar a um estado de impotência, de frieza, de alcoolismo e insatisfação sexual e sentimental. O mundo-clichê que eles habitam, herdeiro de uma iconografia do bem-estar da América dos anos 50, não oferece maiores saídas, uma vez que a cidade grande, o ideal de fuga tradicional – romantizado num American Graffiti, por exemplo –, surge aqui simbolizado pelas sinistras figuras corrompidas e monstruosas que perturbam a paz de sua cidadezinha.
Neste particular, o filme guarda pontos de contato nada desprezíveis com outra alegoria da guerra preventiva, a Guerra dos Mundos de Spielberg. Em questão em ambos os filmes, no de Spielberg em uma seqüência particularmente polêmica, a legitimação de um ato de violência em defesa da família –, em que os filmes refletem em citação direta ou em alusão o Mystic River de Eastwood. Em Cronenberg, porém, é muito clara a opção pela esquiva à discussão moral de Eastwood ou Spielberg. Cronenberg está mais próximo de uma mitologia, do terreno simbólico, que nas mãos dos outros diretores vira terreno pantanoso. Vide a purificação do protagonista, na imagem mais carregada de simbologia religiosa da carreira do diretor, se banhando nas águas plácidas de um lago depois do parricídio simbólico cometido em repúdio à brutal herança que Tom evita receber a todo custo.
No fim, em seqüência antológica à mesa do jantar, o filho adolescente não consegue esconder o fascínio, o orgulho e a inspiração diante do pai; a esposa se vê engolida pela cruel lógica dos fatos, e se resigna num choro calado diante da necessidade da presença daquele que impõe um novo equilíbrio de poder; a criança assustada do início, com a candura e inocência típicas, coloca o prato sobre a mesa, restabelecendo num gesto a ordem familiar e a aceitação plena. Uma vez afastado o mal maior – a crueldade e a barbárie sem sentido –, "Marcas da Violência" se assume como fábula, dando um sentido ao medo e à violência. Os monstros no armário podem ser imaginários ou não – mas, via das dúvidas, melhor manter a luz acesa.
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