quinta-feira, março 02, 2006

A brilhante amoralidade de Woody Allen (por Ricardo Calil para NoMinimo)


Não são necessários mais do que alguns minutos para perceber que “Match Point – Ponto Final”, que estréia hoje no Brasil, é um filme bastante diferente dos últimos realizados pelo cineasta norte-americano. A tipologia dos créditos de abertura continua a mesma, mas a trilha de fundo não é mais algum standard de jazz, e sim a ária “Una Furtiva Lacrima”, de Donizetti.

Dessa vez, a produção não ficou por conta da Dreamworks, mas da BBC – o que ajuda a explicar outras novidades. Entre os membros da equipe, estranha-se a ausência de colaboradores habituais de Allen, como o designer de produção Santo Loquasto e o diretor de fotografia chinês Zaho Fei. Londres substituiu Nova York como cenário principal do filme, e abastados ingleses viraram protagonistas no lugar dos intelectuais americanos.

Allen contentou-se em ficar atrás das câmeras, o que não chega a ser um fato estranho em sua carreira. A boa nova é que não há nenhum jovem ator à vista imitando os trejeitos do velho comediante. Por fim, os diálogos de humor e as cenas de pastelão deram lugar a uma fábula moral e a um visual mais refinado.

A mudança de ares só fez bem a Allen. Dizer que “Match Point” é o melhor filme do cineasta em muitos anos não significa grande coisa, visto que ele vinha de uma longa série de comédias pouco memoráveis. Será melhor afirmar que se trata de uma das melhores obras de sua carreira e uma das produções mais provocadoras do cinema recente.
Apesar das várias novidades, a história de “Match Point” se parece muito com “Crimes e Pecados” (1989), até hoje o melhor filme dramático do diretor, em que Martin Landau interpreta um homem que precisa escolher entre a esposa e a amante. Na trama, o ex-jogador profissional de tênis Chris Walton (Jonathan Rhys Meyers) começa a dar aulas para o jovem milionário Tom Hewitt (Mathew Goode). Chloe (Emily Mortimer), irmã de Tom, logo se apaixona por Chris, mas este se interessa pela atriz americana Nola (Scarlett Johansson), noiva de Tom. Em um dado momento, ele terá de decidir entre o conforto material proporcionado pela primeira e o furor passional oferecido pela segunda. A saída encontrada pelo protagonista para resolver o dilema é uma medida extrema.

Da mesma forma que “Crimes e Contravenções”, “Match Point” sofre forte influência de Fiódor Dostoiévski, que Chris aparece lendo em uma determinada cena. Como o autor russo, o cineasta americano quer discutir as implicâncias morais de ações condenáveis. Mas pode-se dizer que os dois filmes representam uma negação de Dostoiévski. Na obra-prima “Crime e Castigo” (1866), o escritor defende a idéia de que todo crime acaba sendo pago de uma forma ou de outra. Allen contrapõe que um assassinato nem sempre termina em condenação ou em culpa.

Desde o monólogo de abertura do filme, o cineasta argumenta que há um componente fundamental, embora subestimado, a determinar o destino: a sorte ou o acaso. Nessa primeira cena, vê-se uma troca de bola sobre uma rede de tênis, até que ela bate na fita, e a imagem é congelada. Se a sorte está a nosso favor, nos lembra o cineasta, a bola cai do outro lado da quadra. No final do filme, em um achado brilhante, essa cena irá se repetir com outro objeto – e o lugar onde ele cai será determinante para o desfecho da trama.

Para Allen, o crime às vezes compensa. Há um grau de amoralidade nessa idéia que torna seu filme muito mais ousado do que o dos caubóis gays ou o dos agentes secretos israelenses. Em outras palavras, “Match Point” foi o grande injustiçado do Oscar neste ano, ao lado de “Marcas da Violência”, de David Cronenberg.

Outro absurdo foi a não-indicação de Scarlett Johansson ao prêmio de melhor atriz. Mais do que uma jovem mulher deslumbrante, ela é uma das raras estrelas verdadeiras surgidas no cinema americano em muito tempo. Allen, que não é bobo nem nada, vai usá-la como protagonista em dois filmes seguidos – privilégio que só costuma oferecer às atrizes com quem está casado. Com “Match Point”, o veterano cineasta prova que seu talento continua em forma e que mantém seu olhar aguçado para garotinhas.

Nenhum comentário: