sexta-feira, março 31, 2006

Sidney Lumet diz: ‘Fiz mais de 40 filmes. Não tenho do que reclamar’ (por Rodrigo Fonseca para O Globo)


São três sílabas apenas: é-ti-ca. Só que aos 4 anos, quando subiu pela primeira vez em um palco, em 1928, estimulado a interpretar pelo pai ator (Baruch Lumet) e pela mãe dançarina (Eugenia Wermus), Sidney Lumet não era capaz de soletrar aquela que se tornaria sua palavra-chave, a base do processo de alfabetização sociopolítica a que ele viria a submeter o cinema. Lumet tampouco imaginava que seu barato seria dirigir, não atuar. E que sua praia não seria o teatro, e sim a tela grande. Hoje, aos 81 anos, ao ver a entusiasmada reação de público e crítica nos EUA diante da comédia judicial “Find me guilty”, o 43 filme com seu nome nos créditos de direção, o veterano cineasta americano desconfia que Hollywood ainda carece de aulas sobre os deslizes da moral. Premiado em 2005 com um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, depois de ter sido indicado cinco vezes à estatueta, o diretor de sucessos como “Doze homens e uma sentença” (1957) e “O homem do prego” (1964) tentou explicar, em entrevista por telefone ao GLOBO, o que o atraiu na história do mafioso Giacomo “Fat Jack” DiNorscio, cujo julgamento, considerado o maior da história do direito ocidental, durou 21 meses.

Desde 1983, quando “O veredicto” lhe valeu uma indicação ao Oscar, um filme seu não era tão elogiado quanto “Find me guilty”. Qual é o dilema ético que cerca o julgamento de “Fat Jack” DiNorscio?

SIDNEY LUMET: Ele expôs o quão equivocadas as autoridades americanas conseguem ser. Foi o julgamento mais longo da História, envolvendo nada menos do que 76 acusações. E, mesmo assim, após 26 meses, tudo foi decidido em 24 horas. DiNorscio dispensou advogados. Ele se fez defender e fez de sua defesa um show. Ele já estava na cadeia, cumprindo uma pena de 30 anos. Nada podia piorar sua vida.

A escolha de Vin Diesel, um astro associado à pancadaria, deixou os críticos desconfiados. O que o levou a bancar o astro de “Triplo X”?

LUMET: Muita gente esnoba os astros de filmes de ação. Ainda que a história do cinema tenha provado o quanto eles podem surpreender. Sean Connery fez filmes de ação e é um ator soberbo. Clint Eastwood, idem. Quando comecei “Find me guilty”, descobri um curta-metragem de 20 minutos que Diesel escreveu, produziu, dirigiu e estrelou, chamado “Multi-facial”, em que ele faz cinco papéis. Quando vi o desempenho dele, tive a certeza de que ali estava meu protagonista.

Seu nome costuma ser associado à “geração Easy Rider”, formada por Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich e outros diretores que, nos anos 70, engajaram o cinema americano em discussões sociais. O senhor se sentia parte do movimento?

LUMET: Naquela época, em que dirigi “Sérpico” e “Um dia de cão”, não sabíamos que estávamos fazendo uma revolução. Fazíamos filmes. Não sabia que estava integrando um movimento. Em cada filme que fiz, nunca busquei nada mais do que contar uma história. Nunca entendi nem aceitei o fato de os diretores acreditarem que precisam ter um discurso. Quem fala por um diretor é seu filme.

Em seu livro, “Fazendo filmes”, que acaba de ser relançado no Brasil pela Rocco, o senhor menciona dissabores e prazeres profissionais. Que frustrações o mercado gera a quem continua filmando aos 81 anos?

LUMET: Eu fiz mais de 40 filmes. Não tenho do que reclamar. Mas não faço vista grossa para os problemas de Hollywood. O que me assusta no cinema hoje é a compra dos estúdios por grandes companhias, como a General Electric. Elas tratam o cinema apenas como um negócio. Um negócio milionário.

E isso o assusta?

LUMET: Sim. Veja quanto custa um filme hoje em dia. Mais do que isso, veja quanto um filme é capaz de render. Como é que um filme pode render US$ 1 bilhão? US$ 1 bilhão!!!!??? Uma renda dessas faz os investidores acreditarem que arrecadar US$ 1 bilhão pode ser um meta. Se a meta é essa agora, o filme seguinte terá de render US$ 2 bilhões e por aí vai. Só que, para que isso aconteça, nossos longas não podem trazer conteúdos que afastem nenhum espectador. Nesse momento, o cinema passa a ficar parecido com a televisão.

É curioso ouvir isso da sua boca. O senhor estreou na direção na TV.

LUMET: Foi fazendo televisão, especialmente TV ao vivo, que eu adquiri conhecimentos técnicos essenciais à direção. Foi na TV que eu passei a dominar o uso de lentes, e nada no cinema é mais importante tecnicamente do que entender que lente deve ser usada em cada tipo de cena. A TV me ensinou ainda a administrar recursos de produção.

Muitos críticos dizem que a TV limitou o seu senso de experimentação. O senhor discorda?

LUMET: O esnobismo que segrega cineastas de formação televisiva é o mesmo que desqualifica atores como Vin Diesel. Spielberg veio da TV. E nunca vi alguém que tivesse uma cabeça mais cinematográfica do que a de Spielberg. O que eu lamento hoje, na televisão americana, é ver que o telejornalismo não busca refletir os fatos. Não há investigação. Hoje tudo virou propaganda a favor do governo. Ninguém questiona Bush. Só comediantes como David Letterman, Jay Leno e principalmente Jon Stewart (o apresentador da última cerimônia do Oscar) , que é brilhante.

Seu primeiro trabalho na telona foi em 1939, como ator em “One third of a nation”, de Dudley Murphy. Depois de 67 anos de cinema, os filmes ainda o surpreendem?

LUMET: Não sei como 2005 foi para o cinema brasileiro, mas lhe garanto que foi um dos anos mais bonitos na história do cinema americano. Lá pelo mês de outubro, foi lançada uma série de filmes, entre eles “Capote”, “O segredo de Brokeback Mountain”, “A lula e a baleia”, “Boa noite, e boa sorte!” e “Munique”, com ambiciosas investigações humanistas. O que havia de comum entre eles: a autonomia em relação aos efeitos especiais. Nenhum desses filmes dependeu do computador. A riqueza deles está em discutir problemas da América contemporânea.

E o 11 de Setembro? Hollywood já está preparada para falar dele. Oliver Stone, que lança em agosto o filme “Torres gêmeas”, sobre o atentado ao World Trade Center, acredita que sim.

LUMET: Não sei. Isso depende de cada diretor. Sempre achei que ninguém deveria filmar nada sobre o Holocausto. Aquela foi uma experiência tão dolorosamente única que jamais conseguiria ser reproduzida. Não acreditava que um cineasta fosse capaz de iluminar o tema. Mas aí veio Spielberg com o soberbo “A lista de Schindler”. Se meu ponto de vista prevalecesse, “A lista de Schindler” jamais teria sido feito. Quanto ao 11 de Setembro, depende do que Stone tem a dizer.

O senhor enquadra Oliver Stone entre os cineastas que têm discursos mais fortes que seus filmes?

LUMET: Stone é um roteirista magnífico e um grande diretor. Quer dizer... Ele é um diretor competente. Espero que ele não se deixe levar pelas emoções. Algumas vezes, ele deixou que sua paixão o desgovernasse, até que perdesse o controle. Oliver Stone é um diretor que explica ao espectador o que o filme dele tem a dizer. Filmes falam por si.

Que filmes brasileiros o senhor viu?

LUMET: Nenhum! Não fique desapontado comigo. Não é indiferença. É culpa do inacreditável sistema de distribuição de filmes na América. Houve um tempo, em Nova York, em que havia uma salinha de cinema que só passava filmes russos, outra só para italianos... Isso acabou. Há alguns dias, em Roma, fui almoçar com Bertolucci. Perguntei a ele: “Bernardo, quando foi a última vez que um filme seu passou por Nova York?” e ele: “Sidney, meu último filme (‘Os sonhadores’) estreou na sua cidade no ano passado, teve uma bela recepção da crítica, e, mesmo assim, só ficou uma semana em cartaz”. Meu Deus! Estamos falando de Bernardo Bertolucci.

Ao contrário de Robert De Niro, que virou uma caricatura de si mesmo, e Dustin Hoffman, hoje relegado a papéis secundários, Al Pacino, seu ator em “Sérpico” e “Um dia de cão”, ainda surpreende platéias. O senhor acredita que ele vai resistir por muito tempo assim?

LUMET: Entre os astros do cinema, há uma questão recorrente: onde estão os grandes papéis? Uma das tragédias que devastaram Marlon Brando foi o fato de que, ao envelhecer, não lhe sobraram grandes papéis. Só no teatro. Mas ele abandonara o teatro há décadas. Desconfio de que não há mais grandes papéis para Al. Ele está mais velho e nunca foi um homem bonito. Mas não há nada que ele faça sem paixão. Sempre espero um roteiro que exija dele tudo o que os filmes que fizemos juntos exigiram dele. Tudo o que um roteiro cobra, Al Pacino dá.

“Um dia de cão”, que acaba de ganhar uma edição em DVD, é considerado sua obra-prima. Há espaço para filmes como ele nessa Hollywood loteada por grandes corporações comerciais?

LUMET: “Um dia de cão” rompeu tabus. Sexuais principalmente. Meu protagonista tinha um relacionamento homossexual com alguém que tentava uma operação de mudança de sexo. Aquilo foi chocante à época. Mas o que chocava não era o fato em si. Chocava porque era a primeira vez em que um filme americano abordava essa questão como algo absolutamente corriqueiro, sem apostar no sensacionalismo. Hoje em dia, os diretores fazem muita propaganda. Veja “Brokeback Mountain”. É um filme extremamente bem-feito. Nada mais. Mesmo assim, criou-se uma celeuma em torno dele por mostrar caubóis gays. Qual é a originalidade disso? Sabe o que eu acho? Acho que as pessoas deveriam fazer menos propaganda e relaxar.

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