quinta-feira, março 02, 2006

A autobiografia de Truman Capote (por Ricardo Calil para NoMinimo)


Em um excelente perfil de Truman Capote (1924-1984), o mestre Ivan Lessa lembra um significativo “causo” sobre o escritor norte-americano. Capote, Gore Vidal e Norman Mailer falavam sobre seus livros em um sarau literário, até que o primeiro interrompeu os outros dois: “Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não”.

Capote era ególatra, arrogante, mitômano e afetado. Mas, naquele momento, disse uma verdade difícil de ser questionada. No grupo de gigantes da literatura, o baixinho Truman era o único que podia se gabar de ter revolucionado as letras americanas, de haver criado um novo gênero. A obra-prima a que ele se referia chama-se “A Sangue Frio” (1966), marco do jornalismo literário e ainda o mais genial “romance sem ficção” da história.

A gênese de “A Sangue Frio” é o tema central de “Capote”, belíssimo filme de Bennett Miller indicado a cinco Oscar, que estréia hoje no Brasil. Nascido em Nova Orleans, Capote (Philip Seymour Hoffman, favorito ao prêmio de melhor ator) já era uma celebridade literária na Nova York de 1959 quando leu no jornal “The New York Times” uma pequena nota sobre o misterioso assassinato de quatro membros de uma família de fazendeiros na pequena cidade de Holcomb, no estado de Kansas.

Apesar de o assunto parecer o mais distante possível de seu cotidiano hedonista na época (ou, talvez, por isso mesmo), ele acreditou que a história poderia render uma reportagem ou um livro e partiu para a cidade ao lado da também escritora Harper Lee (Catherine Keener), autora de “To Kill a Mockingbird”. Homossexual de voz fina e cheio de trejeitos, ele era uma figura extravagante para uma pequena comunidade do sul dos Estados Unidos, mas conseguiu conquistar a confiança dos moradores com sua habilidade para criar empatia a partir do nada. Mas ele só entendeu por que tinha ido parar em Holcomb quando a polícia prendeu os dois autores confessos do crime.
O filme centra-se na estranha amizade que se estabeleceu entre o escritor e Perry Smith (Clifton Collins Jr.), o mais introvertido e inteligente dos assassinos. Capote afeiçoou-se de tal forma a ele que pagou um advogado para revogar a condenação à pena de morte (e também conseguir mais tempo para ouvir as confissões de Perry). Mas, com o passar dos anos, passou a desejar sua execução, para poder concluir o livro. Os dois estabeleceram uma associação que pode ser chamada de simbiótica, pois ambos os lados se beneficiaram dela: o escritor precisava do criminoso para conseguir sua história, o criminoso precisava do escritor para permanecer vivo.

A relação entre Capote e Perry foi uma das mais complexas e ambíguas já estabelecidas entre um artista e seu modelo na história. Ele comportava emoções paroxísticas de cumplicidade autência, manipulação mental e desejo físico (segundo as más línguas, eles se tornaram amantes). “Capote” tem o grande mérito de captar todas as nuances dessa insólita associação sem se fixar em nenhuma delas, sem tentar definir o indefinível. Assim, tornou-se um dos melhores filmes já feitos sobre os jogos de atração e repulsa entre um autor e seu tema. Para tanto, contou com a ajuda fundamental de Hoffman, que encontra a alma do personagem por baixo de várias camadas de tiques.

A chave para elucidar a relação entre Capote e Perry está em uma frase dita pelo escritor a sua colega Harper Lee: “É como se nós tivéssemos crescido na mesma casa, só que eu saí pela porta da frente, e ele pela de trás”. O filme consegue mostrar que a distância que separava os mundos do escritor refinado e do assassino brutal era apenas aparente. Havia muito mais elementos a unir os dois do que a separá-los: ambos cresceram em lares desestruturados de regiões pobres dos EUA, foram ridicularizados na adolescência por sua baixa estatura, desenvolveram uma ambígua forma de sexualidade, vingaram-se do mundo pela arte ou pela violência. Talvez o grande achado do filme seja revelar que “A Sangue Frio” não foi apenas uma revolução na literatura, mas também a autobiografia dissimulada de Truman Capote.

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